RESPM-20 anos

Ética Revista da ESPM | julho/agostode 2014 32 soberba — como que não tiverammínimas condições de influenciar mais decisivamente a cultura dessa socie- dade já fortemente estruturada, com alguns séculos de história. A riqueza trazida pela imigração europeia e asiática nos últimos dois séculos sacudiu a poeira, atacou as traças da sociedade, revitalizou o país, mas nenhuma das nacionalidades teve dimensão quanti- tativa suficiente para transmitir ao país a sua ética, a não ser em regiões muito específicas. Isso foi feito em doses homeopáticas, como que a conta-gotas, numpro- cesso de influências subliminares. Esse tumultuado processo de formação ética se tor- nou aindamais complexo quando o país — sempremuito permeável a influências externas — viveu a revolução de costumes que se expandiu para omundo a partir dos anos de 1950 e 1960. Antidisciplinadora por excelência, iconoclasta por natureza, antimoralista nas atitudes pessoais, a contracultura, que transformou de forma profunda a parte mais avançada do mundo, atingiu o Brasil de forma muito específica. Combinou-se à luta política contra a ditadura militar, com um viés nitida- mente marxista, formando um ambiente ideológico denso, que atingiu praticamente toda a juventude e transformou nossomodo de ser. Mas não era uma revo- lução cultural propriamente estruturadora do ponto de vista moral. Pelo contrário, tanto que se autointitulou “contracultura”. De seu corpo de ideais não fazia parte, em nenhum momento, um projeto de reestruturação moral. Não poderia, pois, ter sido ela a promover uma percepçãomais nítida do papel dos valores da seriedade e severidade numa cultura como a nossa. A educação brasileira, nessas duas gerações nasci- das durante e depois da ditadura (1964-1985), foi for- temente marcada por essa ideologia que combinava o antiautoritarismo político da luta contra o regime militar à crítica ideológica do modo de vida tradi- cional. O processo de destruição das bases da auto- ridade se espalhou, a irreverência da juventude foi ganhando espaço, as relações nas escolas foram sendo progressivamente abaladas, sem que nenhuma outra filosofia moral tivesse sido posta no lugar. Passamos assimde umamoral hipócrita, prepotente e arrogante, a moral nenhuma, mais precisamente a nenhum pro- jeto ético. Não deveria surpreender que uma situação de virtual anomia tivesse sido o resultado. A formação cultural do país, na dimensão da severi- dade republicana, istoé, relativamenteàs coisaspúblicas, foi, portanto,muito problemática. Nossa cultura política dominante era patrimonialista (usava o público para benefício privado, apropriava-se — legal e ilegalmente — dele), sob um Estado autoritário, pouco comprometido com valores republicanos, pouco diligente em termos de esforço e, para piorar, pouco competente em termos técnicos. As forças da ordem, como a polícia, eram sis- tematicamente prepotentes para baixo e subservientes para cima, severas como povo, indulgentes coma elite. O país, ao que parece, já compreendeu esse pro- blema. Percebeu-o nem que seja de forma intuitiva, pois há bastante tempo, três décadas pelo menos, Desde a redemocratização, opaís tem perseguido a exigênciade atitudes éticas mais rigorosas emaior severidade em todos os campos da vida social

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