RESPM ABR_MAI_JUN 2017
Finanças Revista da ESPM | abril/maio/junhode 2017 36 que lhe dava o que comer; e até se endividasse nos bancos para “enriquecer” nomercado de ações. Deu no que deu. Enquanto isso, os setores de baixa renda — seduzidos quantoqualquer umpelaaspiraçãoà riquezaquemarcava aqueles dias — continuavam se lambuzando no mel das financeiras. Correspondências do tipo “maladireta”man- davam, de vez, os escrúpulos às favas: “Você pensava que dinheiro não nascia em árvore? Agora nasce!” — seduzia uma das instituições em um folheto enviado para a casa docliente. Ao ladododesenhodaarvorezinha insinuante, o crédito pré-aprovado comumvalor de encher os olhos. Não demorou para que a convicção de que era possível faturar gordos trocados com os mais pobres avançasse rumo a outras esferas. As administradoras de cartões de crédito foram as primeiras a se animar. Houveumtempoemque, para ser dignodeumcartão, o sujeito precisava provar muito merecimento. Entretanto, após o boom das financeiras, teve início um processo de expansãoagressivadomercadoparaapopulaçãodebaixa renda. Inicialmente em voo solo e, depois, associado às redesvarejistas,aestratégiaeraúnica:aconquistadomaior númeropossíveldeclientes.Estudantessemrenda;desem- pregados;subempregados,nãoimportava.CadaCPFcontava. A um certo ponto o nível exorbitante de inadimplência dos clientesdasfinanceirasficouóbvio.Omodelohaviase esgotado. Paradoxalmente, issonãoarrefeceua “corridaao ouro dos pobres”, nemprovocou mea culpa ou reflexão do tipo “onde foi que nós erramos?”. Pelo contrário, àmedida que as financeiras saíam de campo, os gastos envolvidos comamanutençãodaquelasoperaçõespassaramaserdire- cionados para incrementar as transações comos cartões. Assim, em pouco tempo passou a ser comum encon- trar pessoas de baixa renda com seis cartões de crédito na carteira. O caso mais simbólico que conheci foi o de uma senhora, desempregada há três anos, moradora da CidadeAdemar —áreade extremo risco social na zona sul de São Paulo —, que era portadora de 14 cartões. Tic-tac. Bancos e administradoras de crédito começarama se inquietar. Queixavam-se da inconsequência dos clientes queemprestavamocartãoavizinhosouparentes edepois se recusavam a reconhecer o gasto. Surpreendiam-se com a passividade dos inadimplentes que não manifes- tavam nem traço de desconforto com as dívidas (“pois então, não eram bons pagadores?”). A lista de sustos e lamentos era imensa. A preocupação virou ato. Promovidos pelo sistema financeiro, seminários, painéis, congressos eworkshops discutiam a importância da educação financeira para a população. Como sonho de enriquecer perdendo ânimo, o arcabouço simbólico da “educaçãofinanceira” ganhava outros tons. De “seja rico”, o objetivo se deslocava para “pagueoquevocêdeve”.Nessenovocontexto, serbem-edu- cado emrelação ao dinheiro era tão simplesmente “pagar as contas em dia”. Com variados graus de competência, todos os grandes bancos desenvolveram sites, criaram cartilhas e espalharam planilhas com intenção de edu- car a “base da pirâmide”. A “base da pirâmide — expressão que anda démodé , mas que foi o “Abre-te, Sésamo!” de muitos cofres para consultorias ditas especializadas embaixa renda — era, pois, incitadapor essaondade educaçãofinanceira a reto- mar seu mítico destino de boa pagadora. Não obstante isso, paramanter girando a roda da fortuna econômica, a base da pirâmide era ao mesmo tempo estimulada a continuar consumindo como se não houvesse amanhã. Como exemplo desse paradoxo temos algumas “ações sociais” que foram levadas a cabo durante esse período. Funcionáriosdosbancos sevoluntariavamparaaapresen- taçãodepalestras sobrefinançasnas áreasmais pobres e, ao final do encontro, além de entregar as planilhas para controle de gastos, induziam os participantes a assinar permissão para receber (mais) umcartão de crédito. Alémdisso, o amálgama das administradoras de car- tões, dos bancos e de grupos varejistas e a política de incitamento ao consumo criavam, diante da intenção de conter a inadimplência, impasses esquizofrênicos. Como supor que o mesmo cidadão que era encorajado a viver “no agora” — e reformar a casa, trocar os eletro- domésticos, cursar a faculdade, comprar carro emoto e ainda excursionar com a família — fosse, num anverso insano, prudente o bastante para considerar as razões de futuro emanter os gastos sob controle?Era pedir demais. Os esforços de contenção da inadimplência davam murro em ponta de faca. Mesmo durante a primeira fase do governo Dilma, quando arrefeceu o ímpeto de De “seja rico”, o objetivoda educação financeira se deslocoupara “pague o que você deve”, comsites, cartilhas e planilhasparaeducarabasedapirâmide
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