Revista da ESPM

JULHO/AGOSTO/SETEMBRODE 2018| REVISTADAESPM 17 de pior. O que há de errado em ser vira-lata? Se é para escolher entre o dobermann da polícia secreta e o vira-lata, é melhor ser vira-lata. Aliás, como fala um verso do samba Cachorro vira-lata , cantado por Car- men Miranda: “amor sem coleira e trabalho sem patrão”. Revista da ESPM — Não falta mais capacidade comparativa ao brasileiro? Giannetti — Uma pequena parcela da população passou a viajar para fora do país, mas a grande maioria não botou o pé fora daqui. Eu vejo que há uma coisa romântica em viajar. Como chega este mundo que quase ninguém viu? Chega pela mídia e de maneira tota lmente distorcida, o que suscita a fantasia de que eu sou a pessoa mais feliz por viver no Primeiro Mundo, onde tudo se resolve de maneira mágica. Eu vivi sete anos na Inglaterra e sei exatamente o que é levar uma vida alienada, pautada por uma lógica competitiva, calculista, em que as relações humanas não têm a densi- dade, o calor e a profundidade que têm na vida brasileira. Eu cansei de conhecer alunos brasileiros, que chegavam deslumbrados, achando que aquilo era a maior das mara- vilhas e queriam encontrar tudo o que lhes faltava, mas em poucos meses estavam morrendo de sau- dade, querendo escutar samba e comer feijoada. Revista da ESPM — Em vários ar- tigos o senhor aborda a questão da educação. Uma das conclusões é essa distorção histórica que há no Brasil: 68% dos recursos vão para o ensino básico, 23% para o superior e somente 9% para o secundário. Em um de seus textos, o senhor cita Rui Barbosa, que em 1883 já dizia que os jovens saíam do científico despreparados para fazer o curso superior. Ou seja, em 130 anos o problema continua o mesmo. Qual seria a política educacional mais ade- quada para a realidade que o Brasil enfrenta hoje? Giannetti — O grande desafio bra- sileiro é o ensino fundamental da mais alta qualidade e universal. Infelizmente, o gasto público em educação é desproporcional por conta da excessiva locação ao ensi- no superior, que é capturado pelos ricos. No Brasil, o gasto público em educação é altamente regressivo e injusto. Os jovens das famílias ricas fazem seus cursos secundários em escolas particulares pagas e quando chegam ao ensino superior, o mo- mento mais caro da sua formação, recebem 100% de subsídio nas esco- las públicas do Estado. Os jovens de famílias desfavorecidas no Brasil fa- zem cursos fundamentais e médios em escolas públicas precárias e, se chegam à faculdade, pagam escola particular. Ou seja, quem menos pode pagar acaba pagando. Revista da ESPM — Um modelo de financiamento que, aliás, está criando uma geração de jovens endividados, como ocorre no modelo de ensino su- perior americano e que tem sido alvo de muito questionamento. Giannetti — Devemos coibir esta distorção. O desafio é criar um en- sino f undamental de qualidade para todos os brasileiros e uma preparação melhor para a vida, por- que há um problema pedagógico no ensino brasileiro. Temos um ensino muito calcado na memorização, na reprodução do que é dado em aula. O aluno brasileiro é pouco provocado a pensar por ele mesmo. Eu, como professor, cheguei a ser questionado depois de uma prova por aluno dizendo que isso não foi dado em aula. Isso é a negação do ensino superior. Eu digo aos alunos: prefiro uma resposta errada com ra- ciocínio demonstrativo a uma certa, mas decorada. O ensino no Brasil não passa de uma grande farsa. Uns fingem que ensinam, outros fingem que aprendem e tudo termina em diploma. Aprender não é reproduzir. Aprender é se capacitar para apren- der de forma lógica e consequente e de forma independente frente aos problemas que aparecem. Revista da ESPM — Nosso sistema de educação vive esse paradoxo de um modelo original ainda baseado na sala de aula do século 19 — formar mão de obra apta para servir ao país por meio do trabalho —, ao mesmo tempo que sustenta um dos níveis mais baixos de ensino secundário téc- nico e profissionalizante. Que objeti- vos devemos perseguir em um modelo mais moderno de educação? Oque há de errado emser vira-lata? Se é para escolher entre o dobermann da polícia secreta e o vira-lata, prefiro o vira-lata, que temamor semcoleira e trabalho sempatrão

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx