Revista de Jornalismo ESPM

22 JANEIRO | JUNHO 2020 Manipuladores da mídia se deleitam com desmentidos feitos por profissionais da grande imprensa, pois não só garantem a exposição de factoides, mas criammuita confusão sobre quem acredita em quê (ou que não duvidaria do envolvi- mento de democratas nisso) estará inclinada a rejeitar a mesma alega- ção. Mais alarmante ainda, quem acredita emconspirações satânicas é suscetível àquilo que a cientista social DanahBoyd chama de “efeito bumerangue”: ou seja, alguém que considera uma certa fonte de infor- mação tendenciosa vai ficar ainda mais convencida de uma informa- ção seesta fordesmentidapor aquela mesma fonte. Logo, se a pessoa acha que o New York Times é fake news, que está em conluio com o Deep State, e o jornal dá umamatéria que desmente o QAnon ou a participa- ção dos Clinton em rituais satâni- cos, essa pessoa provavelmente aca- bará achando que deve haver algo de verdade na acusação – pois, do seu ponto de vista, jornalistas são mentirosos (e podem até ser parte do complô). Essa suspeita, por sua vez, costuma levar o indivíduo que já desconfia da grande imprensa a conduzir sua própria investigação, mergulhando em uma toca de coe- lho cujo algoritmo serve conteúdo cada vez mais extremista e desco- nectado da realidade. Outropoderoso efeitopsicológico que mina o desmentido de falsida- des é a chamada ilusão da verdade. Esse efeito foi identificado inicial- mente em 1977 por uma equipe de psicólogos lideradaporLynnHasher. A ideia é que uma pessoa exposta reiteradamente a declarações fal- sas começa a achar verdade nessas mentiras, ainda que sejamrefutadas por evidências. Emsuma, o fact-che- cking não é páreo para uma men- tira proferida repetidamente. Estu- dos adicionaismostraramque a ilu- são da verdade pode se instalar até quando a pessoa sabe desde o iní- cio que uma afirmação é falsa. Para piorar, o efeito pode ser produzido peloprópriodesmentido (e não ape- sar dele), quando o cérebro do indi- víduo não registra o trecho “... não é verdade” do discurso na memó- ria de longo prazo. O título de um artigopublicado em2005no Journal of Consumer Research resume bem o fenômeno: “ HowWarnings About False Claims Become Recommenda- tions ” (“Quando desmentidos viram recomendação”, emtradução livre). Osvariadosmotivosdequemcom- partilha informação poluída com- plicam ainda mais o problema. Nas semanas seguintes à eleição de 2016 [nos EstadosUnidos], uma pesquisa do centro de estudos PewResearch Center revelou que 14% dos adul- tos no país admitiam ter repassado uma notícia política falsa mesmo sabendo que era falsa no momento emque a compartilharam. Essedado se alinha comosmotivos profunda- mente questionáveis demuitos pro- ponentes do QAnon que postamno 4chan e no 8chan, fóruns on-line de poluição informacional. Oproblema obviamente não está restrito aos dois fóruns. Como diz Boyd: “Se for falar comalguémquepostoualguma informação óbvia e inquestionavel- mente falsa, na maioria das vezes a pessoa sabe que é uma besteira. Ou não está nemaí se é verdade ou não. Por que posta, então? Porque está expressando uma posição”. Nesses casos, apresentar os fatos não servirá de nada para corrigir a falsidade. Fatos nada têma ver com isso, literalmente. Redessociaisexacerbamaindamais oproblema da verdade e oda crença poruma razãobembásica: são, como Wardleexplica,feitasparamaximizar adisseminaçãode informação, inde- pendentemente de seu valor de ver- dade. Incentivar a informação a cir- cular omais depressa possível entre omaiornúmerodepúblicos éoobje- tivo maior – e a estratégia geral de negócios – de redes sociais. Umadas consequências dessa cir- culaçãosemfronteiraséo“colapsode contextos”, um termo que descreve a dificuldade de distinguir, em um momentoqualquer, os indivíduosque compõemumpúblicoon-line,ecomo públicos presentes e futuros podem se confundir de maneira imprevisí- vel. Em outras palavras, um público nunca é um todo homogêneo; é for- mado de um número desconhecido

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