Revista de Jornalismo ESPM
64 JANEIRO | JUNHO 2020 CREDENCIAL RICARDO GANDOUR o termo fake news apareceu na imprensa brasileira em2015. No dia 21 de dezembro daquele ano, a jor- nalista Lucia Guimarães escreveu a expressão em sua coluna semanal, então publicada no jornal OEstado de S.Paulo . Naquele momento, o termo – rótulo novo para uma coisa antiga, o boato, porém agora turbi- nado – já frequentava o noticiário norte-americano, às vésperas das primárias que iriam indicar Donald Trump como candidato pelo Par- tido Republicano, posteriormente vencedor numpleito que viria a ser marcadopelo fenômenodas falsida- des informativas e que depois vira- ria inspiração emodelo para demo- cracias mundo afora. No texto, Lucia recordou um hábito dos tempos de colégio, quando ela e amigas faziam a tra- quinagemde inventar algo e comen- tar emaltavoznopontodeônibus, só para ver como aquilo se espalharia, a ver qual a força do recém-criado boato.Me lembro perfeitamente, na infância no interior de SãoPaulo, de como aminha pequena cidade natal era sazonalmente invadida por boa- tos e lendas urbanas de toda forma, dos ciganos na praça central à loira do banheiro na escola estadual. Mas de onde vem o motor que acelera a renovada versão do bom e velho boato? Há uma máxima do varejo que diz que quando um pro- dutocomeçaa serpirateado, quando umacertamercadoriademarcapassa a ser encontrada, emforma de répli- cas, nos camelôs e por umpreço fal- samente irresistível, é sinal de que o bem original passou a desenca- dear alto desejo, fascínio e demanda por consumo. Na analogia varejista, a emergência de uma imitação seria uma validação da força crescente do produto imitado. As fake news, além do fato de serem deliberadamente forjadas para confundir, imitamo jornalismo para tentar transmitir credibilidade. É a falsificação tentando se passar por “dublê” do que é verdadeira- mente acreditável. O que, incrivel- mente, reforça aindamais os atribu- tos do “produto original”, tal qual nessa analogia do varejo. True lies . Esses atributos configuramo que costumo chamar de “contém jorna- lismo”. Na década de 1990, quando os microcomputadores se prolife- raram e todas as máquinas pare- ciam ser idênticas, a Intel lançou um artifício para se diferenciar, um selo comamarca “Intel Inside”. No mar de equipamentos praticamente iguais na aparência, tamanhoe cor, o intuitodo seloera alertar oconsumi- dor de que, “olhe, veja bem, aí den- tro temalgoque você podenão estar vendo, mas que garante ummínimo de qualidade” – no caso, o processa- dor fabricado por aquela empresa. No início, emmeados de 2016, as fake news eram, digamos, primi- tivas. Apenas um pedaço solto de informação. Como tempo, as peças falsas passarama adotar ummodelo clássico das edições impressas: título, subtítulo e foto com legenda. Era a busca do “formato jornalís- tico” como objetivo de parecer crí- vel. Nummomento posterior, agre- garam-se vídeos. Quer algo mais legítimo do quemostrar algo acon- tecendo “diante dos seus próprios olhos”? Áudios também ganharam força na indústria da desinforma- ção. Como se não bastasse, vieram as deepfakes, áudios e vídeos que reproduzempessoas falando o que simplesmente jamais haviam afir- mado, ou cenas sofisticadamente alteradas. No último dia 7 de maio, durante umdebate patrocinadopelaOrgani- zaçãodoTratadodoAtlânticoNorte (Otan), TimHwang, diretor do pro- grama Ética e Governança do Har- vard-MIT, afirmou que os efeitos dos aúdios e vídeos deepfakes pare- cemestar enfraquecendo (www.npr. org/2020/05/07/851689645/why- -fake-video-audio-may-not-be-as- -powerful-in-spreading-disinfor- mation-as-feare). “Já passamos o estágio em que essas peças pode- riamser realmente efetivas”, acres- centouKeirGiles, especialista russo baseado em Londres, no Centro de Pesquisas emEstudos de Conflitos, no mesmo evento. Eles podemestar certos.Mas qual será o próximo estágio? A conferir, no mundo pós-pandemia. ■ ricardo gandour é jornalista, mestre em ciências da comunicação pela ECA- USP, diretor de jornalismo da Rede CBN de rádios e professor de jornalismo na ESPM. É tudo mentira, #SóQueNão?
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