Revista de Jornalismo ESPM
8 JULHO | DEZEMBRO 2020 Krenak – O jornalismo chegou a se cons- tituir como um poder decisivo em todo o mundo, até o advento da internet, na dé- cada de 1990. Com as novas tecnologias da informação e a chegada da fibra ópti- ca, o que chamamos de jornalismo sofreu uma espécie de explosão, como o Big Ben, e de dentro dele saíram as fake news, a manipulação das eleições e a possibilida- de de dar um golpe sem ocupar um país. Foi o que aconteceu no primeiro manda- to de Donald Trump, com a interferência russa. Edward Snowden sacou o que es- tava acontecendo e virou uma espécie de profeta do apocalipse ao anunciar a trama nomeio do salão, demaneira que pudesse afetar as bolsas de valores e o núcleo do capitalismo. Isso é o que realmente impor- ta. Eleger Trump, Bolsonaro ou qualquer outro é irrelevante para o sistema finan- ceiro global, que produz esse tipo de gen- te e determina quem e quando vai assu- mir o poder, independentemente da rea- lidade vivida em um país. O fluxo é sem- pre do capital que não tem pátria. O mo- vimento do sistema financeiro global não tem nada a ver com os Estados Unidos, a Europa, o Japão, a China ou o Brasil, pois sobrevive à destruição desses lugares. Se de uma hora para outra a América do Nor- te for afundada, o sistema financeiro ocu- pa outro corpo e continua existindo. Revista de Jornalismo ESPM – Mas qual é o papel do jornalismo neste cenário? Krenak – O papel do jornalismo foi diluí- do. O que temos hoje é o domínio de gran- des agências de notícias a serviço do sis- tema financeiro global produzindo e dis- tribuindo para o mundo um tipo de infor- mação que manipula sua escolha aparen- te, indica produtos, mostra onde você de- ve colocar seu dinheiro e depois vai lá e tira esse dinheiro de você, como aconte- ceu quando a bolha americana estourou. Revista de Jornalismo ESPM – Um estu- do da CJR aponta que, embora a mudança climática seja um tema cada vez mais rele- vante para os jornalistas, muitos veículos de comunicação continuamà deriva na ho- ra de cobrir a questão. Por quê? Krenak – O jornalismo virou uma espé- cie de enigma a ser decifrado. Por mais que você confie em uma fonte, sempre fi- ca aquela sensação de que ela pode es- tar sendo direcionada por algum interes- se oculto do indivíduo ou da instituição que dispara a notícia. Não existe jornalis- mo imparcial, assim como não tem medi- cina imparcial, juiz imparcial ou ministro imparcial. É tudo mentira!, como dizia Or- son Welles. Agora é preciso deixar claro que o jornalismo é uma coisa, o jornalista é uma pessoa, que tem uma opinião pró- pria. Uma empresa jornalística não tem opinião, tem interesses. Uma hora essa corporação quer eleger Trump, outra ho- ra Obama, e faz manchetes de acordo com seus interesses. Eu fico imaginando os jo- vens que estão nas escolas de jornalismo como devem ser bombardeados por todo tipo de desinformação — inclusive aquela que parece estar ajudando a ele se esta- belecer como sujeito critico e capaz de for- mar uma opinião. Hoje, quempretende as- sumir este lugar de comunicador tem um desafio enorme pela frente. Veja a histó- ria de DavidWallace-Wells, jornalista ame- ricano que escreveu um artigo sobre mu- dança climática e quase foi linchado pela comunidade científica. Sem ter onde pu- blicar suas reportagens, ele se recolheu e foi estudar o assunto a fundo. Acabou es- crevendo o livro A terra inabitável — uma história do futuro (Cia. das Letras, 2019), que reúnemais de 20 artigos sobre relató- rios, painéis e eventos relacionados à ele- vação da temperatura global. Neste pro- cesso, ele entrevistou grandes cientistas dos anos de 1980 e 1990 e descobriu que muitos deles abandonarama ciência, tive- ram um surto de simplicidade, forammo- rar no mato e aderiram à prática da agri- cultura orgânica. E quando David tenta- va tocar no assunto do aquecimento glo- bal, eles desconversavam e a resposta era sempre parecida: “Eu gastei uma parte muito importante da minha vida com is- so e não vou gastar o resto do tempo que tenho, porque não vai servir de nada!”. Esses cientistas viram mesmo o tamanho do desastre e decidiram aproveitar o res- to de suas vidas. Revista de Jornalismo ESPM – Que li- ção nós, jornalistas, devemos extrair des- sa experiência de David Wallace-Wells? Krenak – O livro de David é um caleidos- cópio, que permite escolher em qual cena você quer saltar como, por exemplo, na ce- na emque o capital financeiro global deci- de criar um clima artificial e bombardear a atmosfera da Terra para capturar o mo- nóxido de carbono, recriar uma biosfera e um planeta climatizado. Só que o custo para viver nesse planeta climatizado será maior do que o atual. No “clube da huma- nidade” só entra quem pode pagar para desfrutar do sistema. Acusei esse fato no meu livro Ideias para adiar o fim do mun- do. Mas voltando ao trabalho de David, ao reunir suas ideias e investigações em um livro, ele descobriu um público interessa- do no assunto e passou a falar com pes- soas, e não commáquinas. Esse fato mos- tra o caminho para reverter essa ideia de que o papel da imprensa foi diminuído em meio àmanipulação de informações e fake news. Existe um interesse público verda- deiro, mas as pessoas precisam ter a pos- sibilidade de entrar em contato com a in-
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