Revista de Jornalismo ESPM
22 JULHO | DEZEMBRO 2020 por michael specter um belo dia em 1990, um amigo perguntou se eu tinha interesse em conversar com Al Gore, à época o senador “júnior” pelo Tennessee. Gore estava escrevendo seu primeiro livro – A Terra em balanço: ecologia e o espírito humano (Editora Gaia) –, que, quando publicado, em 1992, veio alertar para a iminente crise do aquecimento do planeta (o termo “mudança climática” era menos empregado pela imprensa à época). Gore dissera a meu amigo que queria falar sobre a gravidade do assunto e defender uma cobertura mais extensa. Na época, era repórter de ciência do Washington Post . O aquecimento global estava nomeu radar, mas apenas vagamente. Emboraminha grande responsabilidade fosse cobrir a epidemia de Aids – uma tarefa desgastante, diária –, também escrevia de forma mais geral sobre medicina e, ocasio- nalmente, sobre omeio ambiente. Omovimento para enfrentar amudança climática vinha crescendo. Tinha começado para valer só dois anos antes, na época em que James Hansen, cientista do clima da Nasa, declarou em depoimento ao Congresso americano que o aquecimento global era cau- sado pela ação do homeme que trazia riscos consideráveis para o planeta. Havia muitos céticos – de certo modo, ainda há –, mas já era claro para qualquer um que quisesse enxergar que algo lamentável estava em curso. “A década de 1980 foi a mais quente desde que especialistas em clima começaram a manter registros um século atrás”, escrevi em uma matéria publicada no Washington Post em 13 de janeiro de 1990. “E teve seis dos dez anos mais quentes já registrados.” De lá para cá, nas três décadas de Verdades inconvenientes Em todo o mundo, mudanças climáticas mostramque contra fatos não há argumentos! cobertura desse tema pormime por outros, o ponteiro do clima planetá- rio semoveu emuma única direção. Gore tinha lido minha reporta- gemno Post e, durante nosso almoço emWashington, contou que ficara contrariado com várias das ressal- vas que eu fizera no texto. É difícil imaginar que ele lembre daquele almoço, e muito menos de suas divergências com o texto, mas eu nunca esqueci (“Muitos cientistas do clima preveem que a Terra irá se aquecer como aumento [ da con- centração ] de dióxido de carbono e de outros gases que retêm calor na atmosfera”, tinha escrito. “Mas há acentuada divergência sobre o quão grande será esse aquecimento ou quando começará a ser detectado”). Gore argumentou que já havia evi- dência suficiente para sugerir que precisávamos conter excessos indus- triais e pessoais. E achava que jor- nalistas que davam igual espaço a realistas e negacionistas estavam profundamente equivocados. Gore queria uma narrativa climáticamais comprometida. Não sei bem se tinha uma filo- sofia de jornalismo 30 anos atrás, mas sabia que não vinha do mundo da convicção ou do ativismo. Tinha aprendido a ouvir fontes, a apresen- tar os fatos e a cumprir prazos. No texto que Gore leu, tinha feito tudo aquilo, expliquei. Por mais que uma década de calor parecesse funesta, disse a ele, dados climáticos de dez anos da história humana simples- mente não eram suficientes para que cientistas tirassem conclusões importantes sobre o que quer que fosse (acredite ou não, na época a
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