Revista de Jornalismo ESPM

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 23 magnitude da catástrofe, embora previsível, não era tão óbvia). Gore estava estupefato como que via como uma indiferença geral do jornalismo a tendências climáticas e àquilo que significavam para o futuro. Eunão era indiferente, disse; e tampouco achava que a maioria dos meus colegas o fosse. É só que não trabalhávamos para ele, para o Greenpeace ou para qualquer outro grupo de pressão. Achava que ativis- tas tinham um papel e jornalistas, outro. O mundo, a meu ver, ainda era um lugar no qual os fatos iriam prevalecer. Eminha funçãoera apre- sentá-los ao leitor. No fim, meu encontro com Gore foi inconclusivo. Respeitava suadedi- cação, mas ele não conseguiu me convencer a encarar meu trabalho de outra forma. Foi preciso outra conversa, não muito tempo depois, para que eu recalibrasseminhaconcepçãode jus- tiça e verdade. Um dia, com o prazo para entregar uma matéria particu- larmente explosiva sobre uma ques- tãoenvolvendoaAidsprestes aesgo- tar, ergui os olhos e vimeu editor em pé ao lado damesa, comumar ame- açador. “Cadê o texto?”, pergun- tou. Respondi que não podia subir a matéria enquanto não conseguisse falar com um conhecido parlamen- tardaCalifórniaquevoltaemeiaata- cava ahomossexualidadeevia aAids comoumapragaque acometiapeca- dores. Pasmo, o editor perguntou se aquilo era sério. “Nem toda história temdois lados”, esbravejou. “Você é pago para mostrar que tem critério, não para digitar. Sobe a matéria, já!” Fiz o que ele mandou, ainda que contrariado. Nodia seguinte, porém, quando li o texto no papel, vi que meu editor tinha razão. Que diabos eu achava que o leitor iria ganhar ao ser exposto a declarações proferidas por um notório homófobo? Minha abordagem ao trabalho começou a mudar. Devagar a princípio, mas de formamais expressiva quando pas- sei do Post para o New York Times – onde imparcialidade era a meta oficial – e, depois, para a The New Yorker , onde tinha mais espaço e mais liberdade para tecer um argu- mento em meus textos. Enquanto leitor de notícias, fui cada vez mais percebendo falsas equivalências no noticiário. É algo deplorável – e generalizado. É sempre possí- vel achar uma fonte que crê, sem nenhum fundamento, que vacinas matam criancinhas, que transgêni- cos dão câncer, que a mudança cli- mática é uma mentira. Mas declarações estapafúrdias não devem ter omesmo espaço que fatos. Definir o que deixar de fora de uma matéria é tão importante quanto decidir o que incluir. Abemda verdade, a questão cen- tral para nossa profissão nunca foi se devemos permanecer objetivos – não há narrativa absolutamente neutra. A dúvida é, antes, se nossa narrativa é justa e completa. Não sou umjornalista ativista; temgente que ignoraria qualquer coisa que escrevo se achasse que estou tomando par- tido. Mas, quando conto uma histó- ria, em geral é fácil discernir meu ponto de vista. Não vejo nenhum benefício em ficar sempre em cima do muro. É falso. A questão do clima é complexa. Mudanças são lentas e, emgeral, difí- ceis de reconhecer. Muitos leitores ILUSTRAÇÃO: SONIA PULIDO

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