Revista de Jornalismo ESPM
24 JULHO | DEZEMBRO 2020 Para contar a história toda da mudança climática, precisamos usar o melhor de nossos recursos jornalísticos e tornar óbvias as horripilantes conclusões não veema tragédia se aproximando ou não achamque tem importância. O efeito estufa, no entanto, já teve impactoprofundo emmuitos países, incluindoosEstadosUnidos. Vá ten- tar cultivar trigo no celeiro do país, o Kansas, onde já é quente demais e não dá para confiar no tempo para plantar como faziamagricultores no passado. Ou vá contratar umseguro residencial emmuitas das zonas cos- teirasdopaís.Oucomprar framboesa emumsupermecado quando safras imprevisíveis bagunçama cadeia de suprimento. Durante anos, muita gente exce- lente cobriu o tema de forma exaus- tiva, comsensatez e discernimento. Mas houve pouco progresso expres- sivo. Para evitar o pior da mudança climática, temos de cortar emissões de carbono drasticamente – embora nos últimos três anos omundo tenha lançado mais gases de efeito estufa na atmosfera do que em qualquer outromomentodahistóriadahuma- nidade. Édifícil ignorar o fato, como demonstrou o Global Carbon Pro- ject, de que emissões de dióxido de carbono subiram cerca de 1,6% em 2017 e 2,7% em 2018. Anos atrás, já perto de deixar o comando da redação do The Guar- dian , Alan Rusbridger teceu refle- xões sobre como convencer o leitor a dar bola para amudança climática, escrevendo que “o jornalismo até aqui foi incapaz de levar o público a exercer pressão suficiente sobre a esfera política por meio de reporta- genseanálises”.Umargumentoéque justiça e verdade nunca foram sufi- cientes para esse convencimento. O que suscita aquestão: jáque estamos avançandodepressa rumoaoabismo, seria o ativismo, e não o jornalismo, a saída para gerar convencimento? Pode ser, mas jornalistas devem fazer seu papel e trabalhar para ajudar o público a ver e entender o mundo a sua frente. Pode pare- cer um momento sombrio para o jornalismo se refugiar na impar- cialidade, mas não acho que deva- mos abandonar os valores do jor- nalismo e aderir a um movimento ativista. Afinal, um jornalismo honesto, ponderado e destemido é um “movimento”. Lança pergun- tas que questionam formas tradi- cionais de pensar, traz à tona infor- mações que foramocultas por inte- resses poderosos e chama a aten- ção para pessoas e problemas que, sem isso, seriam ignorados. Para contar a história toda da mudança climática, precisamos usar o melhor de nossos recursos jorna- lísticos para tornar óbvias as horripi- lantes conclusões. Quando escreve- mos sobre as consequências da ina- ção política, devemos fazê-lo com seres humanos no centro. Precisa- mosmostrar o que está emjogo para gente economicamente deslocada ou expulsa de casa por cheias. Na teoria, a tragédia não impressiona. Exponha os fatos e use opróprio cri- térioparamontar uma narrativa que apresente seuargumento. Tomepar- tido, é claro, mas de uma forma pon- derada e direta, para que seu jorna- lismo fale por si – alto e bom som, mas não no tomde umcomentarista furibundo. É só assim que o jorna- lismo continuará a importar. Quão ruimvão ficar as coisas antes de que entremos em ação, como sociedade, para mitigar a mudança climática? A situação vai ficar pior –muito pior, talvez. Umdia, porém, creioqueopúblicovoltaráadarvalor aos fatos. Logo, não abandonemos nossos princípios nesse momento terrível – e crucial. Gore, a propó- sito, nunca me disse que o fizesse. Seu argumento, que ele expôs em Uma Verdade Inconveniente , o documentário de 2006 totalmente baseado emfatos, era que a verdade, no fim, ajudaria a salvar o mundo. Só me resta concordar. E, como jornalistas, se não acreditarmos nisso, não sei em que poderemos acreditar. ■ michael specter é professor adjunto de bioengenharia na Universidade de Stanford e escreve para a New Yorker desde 1998, nas editorias de ciências e saúde pública. Texto publicado na edição impressa da Columbia Journalism Review (spring 2020), disponível emwww.cjr.org
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