Revista de Jornalismo ESPM

4 JULHO | DEZEMBRO 2020 “SE NÃO FORMOS TANTOS, P0DEMOS CONTINUAR COMO UMA ESPÉCIE, SEM VIRAR UMA PESTE”, assegura Ailton Krenak, o líder indígena que em setembro foi eleito “intelectual do ano” no prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escri- tores por suas Ideias para adiar o fim do mundo — que já foram traduzidas para mais de seis idiomas, além de A vida não é útil e O amanhã não está à venda — duas obras que reúnem as reflexões deste pensador indígena durante o período mais crítico da quarentena que parou o mundo no ínicio de 2020. “Tem muita gente que suspendeu projetos e adiou seus compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, continua vivendo no passado e não entendeu o recado da Mãe Terra, que está pedindo para a gente parar de agredir o planeta!”, alerta o filósofo brasileiro, que desde março está isolado com o povo de sua aldeia localizada às margens do rio Doce — “aquele que há cinco anos foi morto pela lama da barragem de Fundão, em Mariana (MG)”, lamen- ta o índio que em 1987 comoveu o país com seu discurso no plenário da Câmara dos Deputados em defesa pelos direitos dos povos indígenas. Nesta entrevista à Revista de Jornalismo ESPM , Krenak fala sobre o dilemas do mundo moderno, o papel da im- prensa na sociedade, o futuro do planeta e responde a algumas das perguntas elabo- radas pelos alunos e professores do curso de jornalismo da ESPM. Anna Gabriela Araujo Revistade JornalismoESPM– Em seu último livro, A vida não é útil , você aponta as ten- dências destrutivas da chamada “civilização”: consumismo desenfreado, devastação am- biental e uma visão estreita e excludente do que é a humanidade. Você acredita que o im- pacto causado pela pandemia é capaz de mudar essa triste realidade? Ailton Krenak – Daqui, da terra indígena Krenak, de onde eu concedo esta entrevista, eu não saí nos últimos cem dias. O que aconteceu nesse período é que vivemos em um esta- do de suspensão. Nossa ideia sobre o tempo, o futuro e até mesmo sobre o que guardar e o que jogar foi chacoalhada pela pandemia. E isso aconteceu em diversos campos. A vida profissional de muita gente mudou de uma hora para outra, assim como as relações in- ternas nas famílias. Viramos do avesso e não foi algo planejado. Alguns de nós tive- ram consciência dessa experiência e trataram de se atualizar internamente. Outros passaram a lutar contra isso e nadar contra a corrente. Logo, estão sofrendo mais, porque não conseguiram assimilar o que está acontecendo neste momento em todo o mundo. Es- ta é uma mudança que tem um sentido transcendental. Revista de Jornalismo ESPM– Que recado a pandemia do coronavírus quer passar para a humanidade em termos de consciência socioambiental? Krenak– Éo chamadodaMãe Terra, deGaia—oorganismoque os cientistas já admitemter um tipo de inteligência que nós humanos não conseguimos contatar. E esse recado é claro: Um enigma a ser decifrado! “Silêncio!”. Como uma mãe que sabe o que faz quando a bagunça do filho vai alémdo li- mite, elaestádizendo: pare comisso! Sóque nãoparamos. Ao contrário... Aceleramos! Os rankings publicados recentemente sugerem queosbancosnuncaganharamtantodinhei- ro. Se o capitalismo está bombando, é por- que não ouviu o sinal. Temmuita gente que suspendeu projetos e adiou seus compro- missos, como se tudo fosse voltar ao nor- mal, continua vivendo no passado e não en- tendeu o recado da Mãe Terra, que está pe- dindopara a gente parar de agredir oplane- ta! Se continuarmos desobedecendo, o pla- neta dará um jeito de arrumar essa bagun- ça todaedapróximaveznão teremos tempo nem de espirrar. Não vamos desaparecer a partir de uma tragédia anunciada, tipoApo- calipse. A covid-19 não anunciou quando ia chegar. O próximo evento pode vir do aque- cimento global ou do degelo das calotas po- ENTREVISTA AILTON KRENAK MADELEINE DUCHAMP

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