Revista da ESPM JUL_AGO_SET 2020 web

JULHO/AGOSTO/SETEMBRODE 2020| REVISTADAESPM 23 O ano de 2020 deixará uma marca forte e única. É o ano da pandemia e da quaren- tena.Mundiais enquantoacontecimentos, elastornaramexpostasdiferentesculturas, formasde reaçãoemplanoscontinentais, nacionais, esta- duais, até chegar à reação individual. Condições sociais e recursos individuais forampostos àprova e estendidos comonuma caricatura, na qual umtraço é expandido ao absurdo, tornandouma realidade jáanteriormais visível. Hoje conhecemosmelhor a nósmesmos e aos outros, gostemosounãodoquesenosrevelouoespelho.Também desenvolvemos, emmedidasdiferentes, recursosquenão tínhamos emuitas coisas ricas foramcriadas, enquanto outras tantas se perderam, numcaminho já semvolta. Muitosperguntaramdesdemarço:“Quandovamosvoltar aonormal?” .Resposta:nãovamos.Nãoháparaondevoltar ; muitosdosespaçosqueocupávamosnãoexistemmaisejá não caberíamos namaior parte deles, caso ainda estives- sempor aí. Atémesmo o “novo normal” é uma expressão jádesgastada. Se formoscapazesdeaprender algo,muitos modos de vida anteriores se verão transformados. Este período de pandemia e isolamento expôs todos a uma experiência inédita, compotencial traumático: o medo do próprio adoecimento emorte, assimcomo o de tantos ao nosso redor, a preocupação econômica, assim como a insegurança emrelação ao futuronummomento deflexibilizaçãodoisolamento.Algunsdenósadoecemos enos recuperamos, alguns perderampessoas próximas, outros só tiveramnotíciasmais distantes. Mas somente a notícia de quemais demil pessoas morrempor dia no Brasil por contadocoronavírushámeses jáédevastadora. Tudo isso gera umamplo campo de sofrimento psíquico. Será traumático? Pensadores dedicados aos jovens nascidos neste milênio costumam apontar certas características recorrentes, tais como: esta geração conhece pessoas mais em meios virtuais do que em locais físicos; eles têm maior consciência ambiental; portando seus smartphones, presumem ter acesso a todo o conhecimento em suas mãos, o que faz comque não reconheçam autoridade em seus pais, professores ou empregadores. Mas um ponto está sendo alterado: estes mesmos pensadores apontam que esta geração nunca conheceu uma guerra. Agora conhecem. Paramuitos, a comparaçãoparece forçada,mas a situ- ação que temos vivido tem em comum comuma guerra o risco real à vida que traz, o confinamento que impõe o medo do desabastecimento (mais acentuado no início do isolamento social) e a insegurança comrelaçãoao seu término. É claro que algumas pessoas emcondição eco- nômica mais privilegiada já viviam numa bolha social e, talvez, não tenham sentido tanto os efeitos do confi- namento. Mas o fato é que não se trata de uma situação voluntária e a liberdade de deslocamento foi restringida. Quando se apontava que a atual geração jovemnunca conheceu uma guerra, isto trazia como derivação a ideia de que — dentro de uma condição de classe média para cima — ela nunca passou por riscos reais ou privações fundamentais emsua vida. Este privilégio era revertido, no entanto, à percepção de que ela estava menos pre- parada para lidar comdesafios e frustrações, emgeral. Sabemos, tanto por experiência quanto pela psicaná- lise, que condições de falta criamespaços de constitui- ção subjetiva importantes, como desejos emotivações, aprendizagemde resistência a frustrações e capacidade de resiliência ante dificuldades. “Falta falta”, temos dito a respeito de muitos jovens. Assim, uma das questões que emergem deste período é: será que os jovens sairão mais amadurecidos, com recursos melhores para lidar com a vida? Esse seria um legado precioso e desejável. Todos nós temos agora emnossa experiência algo que talvez só gerações anteriores viveram: medo e impotên- cia. Isto feriu seriamente a confiança que tínhamos na onipotência das capacidades da ciência, damedicina e do próprio Estado. Quem confiava que os avanços tec- nológicos já teriamsuperado todas as contingências da natureza teveque sedeparar comumlimite. Umavacina, sim, será produzida, mas é preciso ainda tempo e traba- lho para que seja disponibilizada para todos. Descansá- vamos sobreumsentimentode segurança que semostra mais frágil agora. Em gerações anteriores, a passagem por uma situação de guerra gerou comportamentos mais conservadores e cuidadosos com relação ao con- sumo, por exemplo. Uma reavaliação sobre lugares ou paísesmais oumenos seguros gerou tambémmovimen- tos migratórios. Voltamos a buscar algo fundamental, anterior ao campo dos projetos e desejos: a segurança. De toda maneira, só saberemos se esta experiência teráumadimensão traumáticasocial ou individualmente como tempo; emalguns anos, provavelmente. Psicolo- gicamente, umtrauma é uma experiência radicalmente

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