Revista da ESPM JUL_AGO_SET 2020 web
SOCIEDADE REVISTA DA ESPM | JULHO/AGOSTO/SETEMBRODE 2020 24 nova e intensa, que supera nossa capacidade de assimi- lação. Por isso mesmo, um trauma paralisa e cria uma experiência de “tempo parado”. Sem dúvida, uma das reações (ou falta de reação) à pandemia foi a negação do acontecimento. Anegação sugere justamente a pobreza de recursos para reconhecer, absorver, entender e rea- gir à situação. Esta paralisia negacionista se expressa na lentidão, insuficiência ou até mesmo na ausência de políticas públicas efetivas no combate à pandemia (escrevo este artigo no início de setembro de 2020). Mui- tos já não respeitam sequer a flexibilização planejada e expõem a si e, com isso, aos outros em praias e bares sem os mínimos cuidados de proteção, como se nada houvesse acontecido ou estivesse acontecendo. A infor- maçãode que a curvade contaminação emortes começa vagarosamente a cair é vivida por muitos como um “já passou!”. E não passou: o alívio é precipitado. Teremos sofrido um trauma justamente se a vida parecer ter voltado ao que era antes; que pareça que nada aconteceu. Nesse sentido, a pior coisa que poderia acontecer seria: nada . Na negação e no esforço por vol- tar à vida anterior, teríamos perdido a possibilidade de aprender algo e nos transformarmos, amadurecermos. Pior, onde não há elaboração do trauma, somos com- pelidos a repetir. Na eventualidade de nova pandemia, seguiríamos sem recursos de reação. Não teremos sofrido umtrauma se formos capazes de absorver o acontecimento e nos transformarmos. Será preciso fazer umlutopor dimensões da vida que tenham sido perdidas, aprendermos muito sobre higiene, cui- dadode si e dooutro, cidadania. Será igualmente preciso criarmos modos novos de viver e conviver. Uma das coisas mais ricas e bonitas que vimos no início do isolamento foi justamente este aprendizado: quando não saíamos às ruas (ou o fazíamos o mínimo necessário), não estávamos apenas com medo de nos contaminarmos, mas procurávamos também não cor- rer o risco de contaminar outras pessoas. Trata-se de umcuidadopara como outro que ultrapassa a tendência mais espontânea de cuidarmos apenas de nossos pró- prios interesses imediatos. Quem vai à rua semmáscara não demonstra que não temmedo de morrer; na realidade, demonstra que não temmedo de matar . Temos uma experiência inescapavelmente autorrefe- rente: só sentimos o que sentimos. Isto não implica um julgamentomoral que remeta ao egoísmo, mas à consta- tação de que a consideração pelo outro é uma conquista; ela é realizadana infância,muitas vezesde forma incom- pleta. Paraumbebê, omundoe ele sãouma coisa só. Com os primeiros anos, a criança se dá conta de que existem outros, mas ainda concebe que eles existam em função dela (cuidando ou perseguindo). É apenas no fim do período infantil inicial (a partir dos 5 anos de idade) que as crianças começama sedar contadequeooutroexiste, independentemente dela e de que, se certas coisas doem nela, devemigualmentedoer nooutro. Eassimpodenas- cer a consideração pelo outro: a compaixão e a empatia. Num ambiente extremamente individualista como o contemporâneo, aquelas primeiras semanas de iso- lamento social foram um alento: pareceu de fato que estava sendo cultivado umsentimento de coletividade e respeito mútuo. Com o passar do tempo, no entanto, alguns fatoresfizeramcomqueaquelemovimentosocial fosse revertido, pormuitos, no individualismo anterior. Nomeio três fatores para o esgarçamento da atitude coletiva de respeito ao isolamento. Emprimeiro lugar, a pressão para o retorno das atividades econômicas. Sem dúvida, o isolamentoatingiude formadiferenteossetores do campodo trabalho. Algunsnão forammuitoafetados; alguns assistiram até um crescimento (como o agrone- gócio e as vendas on-line); masmuitos setores entraram numa crise severa, tendo suas atividades praticamente interrompidas. Atéaqui, comcincomesesdecrise, apres- são foi ficando cada vezmaior. Apandemianãopassou, e seguimos contandomais de mil mortes por dia no país. Mas outros vetores de pressão se impõem, na equação geral das relações sociais. Reabre-se progressivamente a economia, comuma exposiçãomaior ao riscodadoença. O segundo ponto é que a exaustão das pessoas vem se acumulando. No início, imaginamos que a situação levaria algumas semanas ou poucos meses. Com a evi- dência de que seguimos e seguiremos por um tempo ainda indefinido com restrições, o cansaço do isola- mento, o desejo de convívio (a falta que faz umabraço!), No esforço por voltar à vida anterior, teríamos perdido a chance de aprender algo e nos transformarmos, amadurecermos
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