Revista da ESPM

JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇODE 2020| REVISTADAESPM 111 A ESPM teve um professor que transformou a trajetória de muitos de seus estudantes: MárioChamie, opoeta que fezhistóriaden- tro e fora da sala de aula. Ele, que dominava comopoucos aartedaescrita,mudouamaneiracomome relaciono com a palavra, o texto e as infinitas possibili- dades de criar significado, alémdeme ajudar a repensar aminha relação coma vida emtodas as suas dimensões. Hoje, mais de uma década depois de formado, ainda guardomil pérolas e provocações ditas por ele nas aulas de comunicação comparada ou nas oficinas de poesia, que tive oprivilégiode frequentar aos sábados demanhã. Umaprovocação,emparticular,demorouadecantaraté que eu pudesse realmente entender a sua profundidade. Lembro-memuito bem. Ele, como de costume, carregava uma sacolade supermercadovelha ebatida, naqual guar- dava os seus pertences. Na outramão, precavido que era, balançavaempunhoumguarda-chuva. Sempre tivecurio- sidade sobre o que estava escrito naqueles papéis dentro da sacola. Equando tentavamais uma vez vasculhar com os meus olhos bisbilhoteiros, discretamente, ele me sur- preendeudizendo: “Meu jovem, nomundoháduasopções: sersubversivoousub-ser-vivo”.Guardovividamenteaquele momento—oolharparaasacolaaomesmotempoqueouvia a tal frase enigmática. Não sei por que eleme disse isso — quemsabepor sentirqueeuprecisavadaquelaprovocação naquelemomento ou emummomento futuro. De pronto não entendi, assim como não entendia prontamente os seuspoemasdepoesiapráxisquedãoumnóna lógica for- mal, deslocam o significado das palavras para um novo campodesconhecidoe, ao fazê-lo, criamumnovosentido. Sub-ser-vivo?Maisumadaquelasconstruçõesgeniaisdo professorMárioChamie. Uma palavra construída da des- construção de outras e do seu jogo com a palavra subver- sivo. As duas palavras que se colocamemoposição clara, mas evidentementenãoóbvia àprimeiravista. Estaria eu escolhendoviveremqualdasduascategorias?Seriaeuum subversivo?Ouumsub-ser-vivo?Seriaumpoucodosdois? Oque éumavida subversiva?Eumavidade sub-ser-vivo? Há infinitas respostas para essas perguntas, mas encontrei uma maneira muito pessoal de respondê-las e dar omeu próprio significado a esta provocação. Para tanto, eu soltei umnovoquestionamento: oquenos torna humanos? Sim, concordo que é uma pergunta ampla e certamentemuitoambiciosa, quemuitospensadoresdos mais ilustres dedicaram a vida inteira para encontrar caminhos infinitos de respostas. Todavia, esta obvie- dade pode dar luz a um entendimento importante para o nosso lugar nomundo e o papel que podemos exercer. A reflexão sobre esta pergunta pode nos fazer entender a relação que temos como trabalho nomomento presente de grandes transformações tecnológicas, econômicas e sociais. E, principalmente, sobre o futuro do trabalho. Muito se falada inevitável substituiçãodamãode obra humana pelas máquinas e pela inteligência artificial. Em um futuro não muito distante uma massa enorme da humanidade se faria redundante frente a sua substi- tuição por estas tecnologias. Estamos emdireção a esta realidade distópica. Sim. Mas, para toda corrente, há a possibilidade de uma contracorrente. E, nesta contra- corrente, acredito que uma revolução humana está em curso demaneira dialética à revolução tecnológica que pode desocupar grande parte de nós, seres humanos. Essa é uma revolução da alma humana, que diante dos desafios surgidospela imposiçãodas transformações tec- nológicasnos forçaráarepensarosvaloresdavida, dacon- vivênciasocial, nomundodo trabalho. Teremosdeencon- trarumespaço insubstituível porqualquer tecnologia, que vai ressignificar a nossa relação como trabalho e o surgi- mento de novos espaços que nos darão oportunidades do desenvolvimentode outros potenciais. Paraenfrentarestesdesafios,ohumanodeverásetornar mais humano. Usando a expressão nietzschiana, dema- siadamente humano. Neste sentido, o professor Chamie complementa a provocação que trouxe anteriormente ao definiroqueépráxis, oque fundamentaoseumovimento poético: “Fazer e refazer ascoisas, os signos, aspessoas, as emoções, os sentimentos, aspalavras, embuscadenovos, surpreendentes e contraditórios significados, porque o mundonãoéuma inérciaadormecida, omundonãoéuma lesmaque tomouLexotan, omundoéumacoisavigorosa”. Anatureza humana é subversiva, pois se transforma constantemente ao mudar omundo e criar novas culturas, que acabam transformando o humano

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