Revista de Jornalismo ESPM
REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 61 YOUARENOTASOLDIER Documentário de Maria Carolina Telles, 109 min (2021). Estreia em streaming prevista para maio. nenhum método e que docu- mentá-la é trasmitir a absolu- ta irracionalidade. A cena, pa- ra esse fim, é mais que perfei- ta. “Todos pagamos um preço alto para que essas fotos exis- tam. E essas fotos existem por- que seres humanos reais sofre- ram imensuravelmente.” Liohn trabalha com lente de 20mm.Suasfotosparecemsem- pre feitasmuito junto do objeto, mais perto do que Robert Capa (que trabalhava com lentes de 50mm) poderia sonhar quando disse que uma foto não está boa por não ter sido feita suficiente- mentedeperto.Liohnparecees- tar sempre com o nariz enfiado na cena de guerra. O espectador pode reconhe- cer isso na sequência que mos- tra como o fotógrafo produziu sua imagem mais conhecida. Liohnparece estar atrás de uma moita filmando um soldado que atira com seu fuzil da caçamba de uma caminhonete, no centro do quadro. Em meio aos dispa- ros, uma explosão ocorre à di- reita da tela; e o atirador apare- ce em seguida no chão, andan- dodesnorteado. A câmera se le- vanta sobre a moita e vemos o soldado líbio feridomortalmen- te por um estilhaço da bomba que explodiu no muro; no chão, ele levanta o braço para pedir ajuda. Além de toda a potência da imagem fulcral, a sequência revela que o fotógrafo está todo o tempo a cerca de dois metros da cena fatal, ele mesmo pode- ria ter sido atingido. (Essa ima- gem está na capa de meu livro recém-lançado pelas edições Sesc, como a perfeita defini- ção de uma “fórmula de emo- ção”, presente nas fotografias de guerra contemporâneas.) Há um momento no deser- to, antes de começar o tiro- teio que dará origem ao títu- lo do filme, em que Liohn faz uma reflexão sobre a organi- zação ISIS (ou Estado Islâmi- co) e seu grande domínio sobre redes sociais e novas mídias: “Esse pessoal hoje tem seus próprios canais de TV, eles po- dem mostrar as coisas como eles querem, eles não preci- sam mais dos jornalistas. Isso dificulta as coisas para a gen- te”. O jornalista independen- te hoje é um concorrente dos grupos em conflito (o que vale tambémpara os diversos lados envolvidos no embate político em curso no Brasil). Uma coisa curiosa é que An- dré Liohn está mostrando isso em um lugar no meio do deser- to quando estoura uma bom- ba; ele segue falando, olha pa- ra o lado desconfiado; segue fa- lando quando se ouve uma ra- jada de metralhadora; e uma voz diz para todos se protege- rem. De fato, as notícias insis- tem em favorecer o jornalismo que cobre os fatos imprevisíveis e incontroláveis. O tiroteio se intensifica. Nesse momento, André está sendo filmado pelo cinegrafis- ta João Catalano, ele só tem a câmera. João dada hora diz: “Não quero mais fazer isso aqui, não estou me sentindo bem”. Em seguida, falou: “Só estou pensando alto”. Mesmo para correspon- dentes tarimbados, as cenas de conflito são um pesadelo, como descreve Liohn: “De vez em quando, alguémme conta- ta dizendo que tem o sonho de ser correspondente de guer- ra. Eu não dou atenção, por- que aqui não tem sonho, aqui é jornalismo. Para essas pes- soas aqui, é um pesadelo”. O filme traz várias refle- xões do repórter sobre de- pressão, risco de morte e sui- cídio. Em uma cena, no que parece ser a janela do edifício Copan, Liohn descreve um epi- sódio de profunda depressão em que prometeu não voltar mais a zonas de guerra e pen- sou em pular do prédio. Mas em seguida ajusta a ideia ao dizer: “Se até hoje lutou tan- to pela vida, por que desistir exatamente agora?”. Ele voltou para a Líbia e viu outro companheiro mor- rer: o líbio Abdul Qader Fas- souk (1974-2016). André con- sidera que ele estava com um comportamento suicida na- quele dia. Ou talvez estivesse apenas semmedo de morrer e conclui: “Naquele momento vi que eu também estava tentan- do morrer como mártir”. “A guerra na Líbia levou mais tempo e muito mais vi- das do que imaginávamos”, diz Liohn na narração do fil- me, quando fala das mortes dos outros jornalistas. Nos le- treiros finais, lê-se que 580 jornalistas foram mortos em coberturas de conflitos entre 2010 e 2020. É uma atividade muito mais arriscada do que talvez a ética profissional po- deria supor ou permitir. Ao mesmo tempo, há um senso comumde que se trata de uma prática mortal. Até a filha de Liohn, aos 10 anos, sabe dis- so, como revela ao dizer “Meu pai quer morrer”; ou como diz o filhomenor: “É uma profissão de merda”. Chocado diante da percepção de risco dos filhos, emummomento de depressão, Liohn anda pelas ruas fazendo uma digressão em que consta- ta nomesmo sentido: “Você vai morrer um dia, cara”. Namesma sequência, no en- tanto, diante de inúmeros turis- tas que fotografam ruínas ro- manas por onde ele passa, An- dré Liohn experimenta uma es- pécie de “Eureka”. Todomundo tem câmeras e pensa fazer fo- tos únicas, mas todos fotogra- famas mesmas coisas. Sómes- mo o repórter de guerra pode ir até onde nenhum turista po- de, retratar o inédito e sobrevi- ver como ninguémmais. Ele de- cide voltar ao deserto deMosul depois que o governo iraquiano declarou vitória e depois proi- biu jornalistas de entrarem na zona de conflito. Quando o documentário termina e começam a subir os créditos, em vez de fotos de guerra, surgem cenas que André Liohn vem fotografan- do na Itália e no Brasil durante a pandemia da Covid-19. Uma espécie de justaposição muito sugestiva: vivemos uma nova guerra, esta mundial e onipre- sente, agora embaixo de nos- so próprio nariz. ■ DIVULGAÇÃO
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