Revista de Jornalismo ESPM

64 JANEIRO | JUNHO 2021 eutinhaumcunhado, renato, que sempreme recebia comalguma notí- ciadotipo“Hojevinhavindoparacasa evioatropelamentodeumciclistapor um caminhão, daqueles de caçamba com cimento”. Ele esperava a reação de espanto e prosseguia: “Pois não é que o ciclista foi esmagado e o cami- nhãocapotou,arrancandoacabeçado motorista,que,porincrívelquepareça, saiudadireção,levantou-seeaindaque- riabrigar?”.EsteeraoRenato,modelo do Schadenfreude – o leitor típico que recorreaosjornaiserevistasparasatis- fazerseuprazerdeveradesgraçaalheia. Schaden (desgraça), freude (amigo), gente que extrai prazer da desgraça alheia,talvezcomoumacompensação por aquelas coisas não estarem acon- tecendo com ele. Essa figura sempre existiu, desde os primórdios do tea- tro grego e das arenas romanas, mas ganhou uma dimensão infinita como desenvolvimentodosrecursosdigitais. Ainternetjuntoutodosos schadenfreu- des do mundo. Eu lembro que, há 20 anos,quandooDaltonPastoreerapre- sidentedaAbap,houveumareuniãona entidade comos principais dirigentes dosmeiosdecomunicaçãodoBrasil,e, pelaprimeiravez,estavamtambémos diretoresdosmeiosdigitais.Oassunto era a lutapela liberdadede expressão, então sob ataque. Eu pedi a palavra e disse que era radicalmente contra toda forma de censura,massugeriaaosdiretoresdos meiosdigitaisquefosseexercidoalgum controlesobreos internautas, quenos comentáriosabusavamdospalavrões, caluniavam,expressavamumaidiotice semfim.Eudisse:“ointernautavaiaca- bar coma internet”. O Dalton, que era o moderador da reunião,meolhoufeioelembrouqueos responsáveispelainternetestavamali. O tempo se encarregou demostrar que eu tinha razão e que umcontrole, através dos algoritmos, é possível ser exercido sem caracterizar censura. A mentira, oexagêroeaomissãodaver- dade,cujocombatesemprefoiacausa daboapropaganda,finalmentecome- çavamasercombatidosnosmeiosdigi- tais.Masissonãofoisuficienteparaeli- minaroespíritodasarenasromanas,da intimidação, do canibalismo, da voca- ção a escravizar o próximo. Esses piores aspectos da natu- reza humana, que já faziam parte da imprensa, multiplicaram-se por mil e agora seu combate deve se dar em cada linha de texto. Que o diga o José Roberto Whitaker Penteado, que fez umrecentecomentáriosobreoPapae que,paraseuespantoeindignação,foi atropelado por umatento algoritmo. Masháumproblemacomjornaise revistas ou televisão. Uma boa repor- tagem, hoje, não custa menos de um milhão de reais. Se computarmos o investimento em máquinas, tintas, tempo de especialistas gráficos, ener- gia, distribuição – no que se refere ao hardwaredaimprensa–eacrescentar opreçodosoftware–,criaçãodapauta, pesquisadosingredientes,presençade alguém que saiba escrever e consiga, num prazo sempre sofrido, juntar os elementosdoquem,quando,onde,por quê, como –, o preço é inconcebível. Sustentar todo esse custo compro- paganda torna o preço do centímetro muito alto e afugenta os anunciantes. Assim, podemos prever que a imprensa, tal como a conhecemos – feita de papel, máquinas complexas, gentequesabeinvestigar,escrever,con- feriretemcoragemdepublicar–,ficará reduzida a folhetins de interessepon- tual,porcausadoscustosdeprodução. As longas reportagens estão limita- CREDENCIAL ROBERTO DUAILIBI A imprensa temfuturo? dasaveículosquetêmdinheiroinfinito, comoo NewYorkTimes,TheGuardian, TheEconomist eosjornaissubsidiados daChina e daRússia. Paradoxalmente,nessecenáriocaó- tico, a única coisa que se salva é o cara que sabe escrever, a pessoa que con- segue imaginar uma pauta, planejar umconteúdoecolocarasletrinhasem sequêncianumdeterminadoprazo de publicação.Equesaibaexploraroingre- diente fundamental da existência da imprensa:aeternacuriosidadehumana. Escreveréoofíciomais sofridoque existe. Ele é resultado de constantes protelações, atrasos, dúvidas, temo- res, medo de críticas, ameaças. E bai- xas recompensas. Isso significa que, cadadiamais,aspessoasqueconsegui- remfazerissoserãovalorizadas.Claro que haverá algoritmos que ajudarão a cumprir a tarefa, bastando, emalguns casos, preencher um formulário e ter umamatériapronta.Asfontestambém serãomaisconfiáveis.Hojequemsabe manipularoGoogle,aWikipédia,oIns- tagram,oTikTokeoSnapchatproduz qualquercoisa. Assim,aprenderjorna- lismoéfundamentalmenteaprendera escrever e aprender a superar os blo- queiosquetornamoofíciotãosofrido. Por outro lado, a pessoa que sabe escrever,produzirumroteiro,oucriar um suelto ouummeme,poderáganhar dinheiro por conta própria. Se antes os cursos de jornalismo preparavam profissionais para serem empregados de grandes corporações ou entidades governamentais(osonhodamaioriados estudantes),hojedeveensiná-loaolhar seutextocomoumprodutoraroepre- cioso, quemerece ter umpreço bom. Enfim,nofuturo(queeupróprionão estarei vivo para ver) o jornalismo vai sofrermodificaçõesdramáticas,maso jornalista – como indivíduo ou como equipe – vai prosperar. ■ robertoduailibi éumdosmaioresnomesda publicidadebrasileiraeconselheirodaESPM

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