Revista de Jornalismo ESPM

ABATALHAPELA CREDIBILIDADE Guerra entre Rússia e Ucrânia é marcada por uma série de atentados virtuais contra a verdade e uma enxurrada de desinformação, como aponta o material produzido pela CJR ENQUANTO ISSO NO BRASIL... I Virem-se! – a mensagem é clara e cada vez mais impactante no dia a dia do cidadão, como explica o jornalista JORGE TARQUINI ENQUANTO ISSO NO BRASIL... II Por que a esfera digital se tornou uma mentirosfera e... como será o amanhã?, questiona LEÃO SERVA ENQUANTO ISSO NO BRASIL...III Confira as estratégias e armas da imprensa para divulgar os fatos e combater a desinformação em plena era da pós-verdade IDEIAS MAIS CRÍTICAS LUCIA SANTAELLA revela o que promove a disseminação desmedida da desinformação CREDENCIAL PATRICIA PECK PINHEIRO fala sobre a contribuição da informação para a manutenção da democracia ilustração: andré barroso/fotoarena

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REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 1 JANEIRO | JUNHO 2022 3 EDITORIAL J. Roberto Whitaker Penteado registra os males da guerra mundial contra a desinformação 4 IDEIAS + CRÍTICAS A VORAGEMDA DESINFORMAÇÃO Lucia Santaella aponta as causas da disseminação desmedida da desinformação 10 ESTAMOS DECIDIDOS A CONTINUAR Kyle Pope apresenta uma coletânea de reportagens especiais publicadas na CJR ao longo de seus 60 anos 12 JORNALISMO VERSUS SEGURANÇA Editores da CJR resgatam um debate entre o então presidente dos EUA John Kennedy e a imprensa americana, que foi publicado na CJR em 1961 16 COMO VOCÊ SABE? Michael Specter relembra fatos marcantes, como a notícia do assassinato de JFK, que desafiam a imprensa na hora de transmitir a informação correta para o público 20 FOGO AMIGO Paul Mcleary mostra como os jornalistas locais cobriram a Guerra do Iraque para os meios de comunicação do Ocidente 24 NA MIRA DA MÍDIA Kyle Pope faz uma análise da cobertura jornalística e do papel da imprensa na guerra entre Rússia e Ucrânia 26 A MÍDIA NA MIRA Jon Allsop relata como a lei das fake news minou o jornalismo independente na Rússia 30 A HORA CERTA DE PARTIR Em entrevista à CJR, Eleanor Beardsley, correspondente da NPR, fala sobre a arriscada missão de cobrir a guerra e a difícil decisão de deixar a Ucrânia 34 SEM ACESSO À INFORMAÇÃO Mathew Ingram questiona a estratégia do governo russo em bloquear os aplicativos e serviços de empresas de mídia no país 36 E SEGUE A GUERRA... Jon Allsop retrata o dia a dia dos jornalistas que estão na linha de frente do conflito entre Rússia e Ucrânia 40 ENQUANTO ISSO NO BRASIL...I Jorge Tarquini revela uma verdade que atinge diariamente cada cidadão do mundo diante do tsunami de informações verdadeiras, falsas, imprecisas, tendenciosas, fora de contexto ou do seu tempo: “Informações falsas ou descontextualizadas só incomodam quando são contrárias à bolha, às crenças e preferências das pessoas!” 44 ENQUANTO ISSO NO BRASIL...II Leão Serva provoca: “Por que a esfera digital se tornou uma ‘mentirosfera’?” 46 ENQUANTO ISSO NO BRASIL... III Confira as estratégias da imprensa na divulgação dos fatos e no combate à desinformação em plena era da pós-verdade, do metaverso e dos influenciadores digitais 54 PARA LER E PARA VER Confira as melhores obras de Marshall McLuhan, o fenômeno dos anos 1960, que representou uma rara mistura de cientista social profundo e inovador, guru, astro pop e marqueteiro, ou seja, a mais pura essência da definição do atual “influencer” 62 CREDENCIAL Patricia Peck Pinheiro ressalta o poder da informação em um universo cada vez mais virtual A guerra na era da desinformação Pág. 24 O crescimento da mentirosfera Pág. 44 SHUTTERSTOCK

presidente Dalton Pastore vice-presidentes Alexandre Gracioso e Elisabeth Dau Corrêa diretoria Flávia Flamínio (diretora de operações acadêmicas), Rodrigo Cintra (diretor de internacionalização) e Tatsuo Iwata (diretor nacional de pós-graduação e educação continuada) conselho editorial J. Roberto Whitaker Penteado, Maria Elisabete Antonioli e Ricardo Gandour REDAÇÃO DA REVISTA DE JORNALISMO ESPM editor José Roberto Whitaker Penteado editora-assistente Anna Gabriela Araujo diagramadora Gaby Mayer Braga tradução Ada Félix revisão Mauro de Barros A Revista de Jornalismo espm é uma publicação semestral da ESPM, com conteúdo exclusivo da Columbia Journalism Review endereço Rua Doutor Álvaro Alvim, 123 VilaMariana - São Paulo - SP - CEP 04018-010 editorial 11 5085-4643 e-mail gabriela.araujo@espm.br informações 11 5085-4508 e-mail revista@espm.br site www.espm.br diretor da columbia journalism school Steve Coll chairman Stephen Adler diretor de redação e publisher da cjr Kyle Pope editora executiva Betsy Morais editora digital Ravi Somaiya editor senior Brendan Fitzgerald chefe de redação digital Mathew Ingram redação Alexandria Neason, Amanda Darrach, Andrew McCormick e Zainab Sultan editor do tow center for digital journalism Sam Thielman editora colaboradora Camille Bromley A Columbia Journalism Review é uma publicação trimestral da Columbia University Graduate School of Journalism. A Revista de Jornalismo ESPM (ISSN 2238-2305) é uma publicação semestral Ano 10, Número 29, janeiro-junho de 2022 Imprensa livre, Democracia forte A Revista de Jornalismo ESPM — edição brasileira da Columbia Journalism Review — foi criada em 2012, com o objetivo específico de promover, no país, os aspectos educacionais e éticos, a pesquisa e o progresso material da profissão. A ESPM garante aos editores liberdade ilimitada de opinião, direito inalienável do jornalismo em todas as formas de expressão. Cumpre registrar, no entanto, que os artigos assinados, assim como o editorial, não representam a opinião da ESPM.

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 3 EDITORIAL Bemmais tarde, despertou-me a curiosidadede saber por que tão importante personagem escolheria lugar assimdesconfortável comomoradia. Edescobri que, por artimanhas daMentira–ambasmulheres jovens ebonitas –banhavam-se juntas, numdiade verão, e aMentira, sub-repticiamente, escapou, levando todas as roupas da Verdade para disfarçar-se com elas.* As discussões resumiram-se aos ambientes acadêmicos atéodiaemqueexplodiunomundocontemporâneo das comunicações aparadoxal expressão fake truth: uma falsa verdade, ou umamentira verdadeira. E só “pegou” no Brasil porque está em inglês. Você terá oportunidade de ler, nesta Revista de Jornalismo ESPM/Columbia, alguns textos de grande percepção, assinados pelos nossos colaboradores estadunidenses e brasileiros. Um outro tema, escolhido há tempos, era uma merecida homenagem de felicitações aos nossos “pais” ou “padrinhos”, da Columbia Journalism Review – que em 2022 – completa seis décadas de existência.** Aí veio a Guerra. Uma guerra não tão diferente das outras ocorridas depois de 1945, mas que se tornou mundial através de uma rede de comunicação que, em breve, estará atingindo a população total do planeta. “Parem as máquinas!” seria a reação dos editores de A verdade nua, o aniversário e a guerra Otemabásicodoeditorialdestaediçãoda revistadejornalismoespm/columbia estavajáestabelecidocomoumdosmais antigosdahumanidade: aVerdade.Confessoquemeveioàmente–emprimeiro ligar – a letra de uma composição de noel rosa, que ouvi emcriança e que dizia: “a verdade, meu amor, mora num poço”. qualquer “jornal de antigamente”, com seu compromisso de renascimento diário. Mas não este veículo que está em suasmãos, comoquase livrescocompromisso de ser produzido e distribuído duas vezes por ano. E nossa valorosa equipe mostrou-se à altura do desafio (perdoe o lugar-comum).Você teráoportunidade de conhecer vários aspectos dessa praga imortal da humanidade, desde o estereótipo do destemidoCorrespondentedeGuerraatéas transmissões live, na sua sala de visitas de massacres e violência. Estão cobertos os três temas, pelo Editorial. Claroquehámais: paraonossorequintado (!) público, muitaspequenasobservações resultarãoemnovascuriosidades e pesquisas. É o que queremos. Ocorre-nos um quarto tema, que não faz parte do corpodarevista,maséuma informaçãorecebidarecentemente:muitas escolasde jornalismoeoutras instituições estãocolecionandonossos exemplares emsuas bibliotecas e asmatérias têmservidode informaçãoe referência para trabalhosdemestrado, doutoradoepós-graduação. Pode-se querer mais? ***** * A cena da Verdade nua saindo do poço é esplendidamente representada pelo pintor Jean-Leon Gérôme (1896), acessível em https://www.facebook.com/ historiadaarteonline/posts/1063709914102476/ ** Por coincidência, estamos comemorando também o décimo aniversário da edição brasileira j. roberto whitaker penteado Editor

4 JANEIRO | JUNHO 2022 dizia riobaldo que viver é muito perigoso. Mal podia ele supor o quantomais perigoso iria se tornar desde a dobrada do milênio. Perigoso, entre outras coisas, porque complicado, oumelhor, emaranhado. Vivemos mergulhados em um grande imbróglio nesta era do big data, da inteligência artificial, da dataficação, das novas acrobacias do capitalismo de plataforma, de vigilância, de neocolonialismo de dados, era da grande aceleração e crise climática, oumelhor, do “capitaloceno” ou ainda “antrobsceno”, era também do metaverso e suas perspectivas de obliteração do senso de realidade, e, no que diz respeito ao universo da comunicação, era da voragem da desinformação. Longe de ser uma hipérbole, com a ideia da voragem, quero chegar à imagem de um buraco negro que vai absorvendo tudo que passa por perto. Para o que está acontecendo, toda preocupação é ainda pouca. Não há meias palavras, nem tergiversações, tendo emvista os efeitos nefastos e destrutivos que a desinformação, acionada pelo paradoxal funcionamento das redes digitais, provoca na sanidade da vida pública, social e capilarmente da vida psíquica. Embora seja impossível tratar, de uma só vez, dos impasses e dos dilemas acima elencados, eles aqui comparecem como palavras-chave para alertar ao fato de que a desinformação não é um fenômeno isolado. Embora seja preocupação magna especialmente dos jornalistas e daqueles que prezam e lutam pelo bem comum, a que ainda chamamos de democracia, as fake news e a desinformação por elas provocadas fazem parte de um emaranhado de problemas que se entretecem de modo denso. É enorme o número de livros e artigos acadêmicos, de matérias e colunas em meios noticiosos, de colóquios e palestras que, desde pelo menos 2016, foram e continuam a ser produzidos e divulgados no Brasil e em outros países na busca de diagnósticos que sejam capazes de indicar caminhos de enfrentamento. Já em 2017 e em outros documentos posteriores, A voragem da desinformação O que promove a disseminação desmedida da desinformação não é apenas a indústria maligna de bots, mas sobretudo a ignorância das pessoas. Como combater esse problema mundial? LUCIA SANTAELLA SHUTTERSTOCK.COM IDEIAS + CRÍTICAS

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 5 a Unesco, nos cuidados que toma com as conjunturas do Sul Global, tomou a si a tarefa de iluminar a complicada história e a variedade das dinâmicas sociais, econômicas, culturais, tecnológicas e políticas da desinformação, com as precauções necessárias para evitar soluções simplificadoras. Entre as consequências inócuas dos remédios simplistas encontra-se aquela de passar a impressão de que a solução dos males está próxima. As fake news e a desinformação, em suas conexões e diferenças, por que usar um ou outro termo e suas respectivas tipologias é um assunto que se desdobra em subtemas, tais como: a) os desgastes que tudo isso provoca na necessária credibilidade nos meios informativos legítimos e nas tarefas que cabem ao jornalismo ético e profissional; b) a lógica perversa da disseminação com que operam as redes sociais; e, para completar, c) os impactos degradantes que provocamna vida pública, no exercício da cidadania profícua e nos ideais da democracia. São temas que já foram tratados e esmiuçados em tantos detalhes que deixam poucas brechas para novas entradas. Parece que chegamos ao ponto emque os discursos contra a desinformação já chegaram, eles mesmos, ao ponto da hiperinformação. De todo modo, isso não deve ser casual ou inapropriado, já que aquilo que começou como uma enxurrada, converteu-se em dilúvio e hoje nos assombra como uma voragem. Por isso, as fake news e a desinformação têm inquietado as mentes de todos nós que nos julgamos seres pensantes e entristecido nossos corações desalentados diante da dissipação de valores responsáveis pela dignidade do humano, entre eles, em especial, aqueles que podem garantir a integridade do homo politicus com que sonhou Aristóteles. O campo da prática, ou seja, da luta travada no corpo a corpo, abriu- -se em um leque variado de iniciativas e formas de engajamento e ativismo que buscammitigar, mais do que isso, funcionar como barricadas de resistência na guerra

6 JANEIRO | JUNHO 2022 da desinformação. Antes de tudo, estão em ação as agências de checagem, que crescem ininterruptamente e tendem a provocar uma promissora bifurcação no exercício do jornalismo, de um lado, a tradicional produção e interpretação de notícias fiéis à verdade dos fatos, de outro, os motores de autenticidade que higienizam a deterioração dessa verdade. Há também as ações visando à regulação das fake news e das plataformas de tecnologias, as big techs, tema que passa pelo fio da navalha do resguardo da liberdade de expressão e que tem levado a discussões controversas. Existem igualmente as iniciativas de organizações não governamentais emdefesa da democracia e dos direitos humanos, assim como os ativismos nas próprias redes para a divulgação dos estragos provocados pela desinformação. Há, como não poderia faltar, a insistência na educaçãomidiática e, atémesmo, já aparece o uso da inteligência artificial em análises preditivas de risco e avaliações semânticas de mensagens enganosas e antiéticas. Tudo isso está em um andamento contínuo para a constituição de um campo de contraforça significativo que reclama por adesões de várias ordens. Entre elas, defendo que a tarefa de bem compreender não encontra nunca seu ponto final, nem deveria, diante da complexidade e opacidade dos fatores que se apresentam. Buscar vias de clareamento da opacidade é uma das chaves para melhor agir. Diante disso, proponho problematizar dois temas que, tanto quanto é do meu conhecimento, as discussões até agora levadas a cabo ainda não enfrentaram em sua radicalidade, a saber, a eleição do termo desinformação em detrimento de fake news e a necessária problematização do que continua a ser chamado e entendido por mídias, já que é esse entendimento que a propalada educaçãomidiática também toma por base. Há algumas razões que têm norteado a recusa do uso da expressão “fake news” e levado à sua substituição por “desinformação”. Em primeiro lugar porque fake news, que emportuguês se traduz por notícia falsa, oumelhor, feita para enganar, não é considerada adequada para descrever e denunciar os fenômenos de poluição e desordem informacional. Deve-se evitá-la, em segundo lugar, devido ao fato de que políticos tomaram a expressão a si para criticar, reprimir e minar a credibilidade da imprensa livre como se ela fosse a fonte da falsidade, justamente quando não são acobertados pela imprensa os fatos políticos que devem ser denunciados. Um outro argumento bastante acolhido pelos jornalistas profissionais vai na seguinte direção: “se são notícias, não podem ser falsas. Portanto, se são falsas, não podem ser notícias”. Quer dizer, se “notícias” significam informações verificáveis de interesse público, então as informações que não atendem a esses padrões não merecem o rótulo de notícias. No fundo, portanto, o que os jornalistas buscam com esse argumento é reivindicar a integridade da tarefa que lhes cabe como profissionais. Produzir notícias e zelar por sua fidelidade à verdade factual, para usar a expressão cunhada por Hanna Arendt, é justamente aquela que compete ao jornalista desenvolver e por ela zelar. Para isso, é necessária uma formação específica que prepare a pessoa para fazer frente às tarefas, principalmente éticas, que isso envolve, exatamente o que falta às enxurradas de diatribes que correm pelas redes digitais. Tudo estaria assim perfeitamente justificado. Contudo, os argumentos não são inteiramente “As agências de checagem tendem a provocar uma promissora bifurcação no exercício do jornalismo, de um lado, a tradicional produção de notícias fiéis à verdade dos fatos, de outro, osmotores de autenticidade que higienizam a deterioração dessa verdade”

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 7 convincentes quando se lança ao problema um olhar semiótico. Há uma diferença que deve ser estabelecida entre fake news e desinformação, dela resultando que ambas são complementares e não excludentes. Trata-se, portanto, de uma diferença que vai alémdamera predileção, por quaisquer razões, pelo uso de uma ou de outra Quando falamos em fake news, estamos falando do tipo de notícia em si que, traindo o que deveria ser notícia, reverte-a em falsidade. “Falsa” funciona, portanto, como um atributo negativo de notícia. Desinformação, por seu lado, apresenta um sentido distinto. Tanto é assim que se pode também dizer que as fake news são feitas para desinformar, quer dizer, a desinformação é o efeito produzido nos intérpretes quando afetados por fake news. Que ambas as palavras são complementares fica aí revelado. Tanto é que, quando os tipos de fake news e tipos de desinformação levantados pelos estudiosos são confrontados, eles coincidem, o que nos leva à conclusão de que criar oposições semânticas insustentáveis entre fake news e desinformação cria tropeços desnecessários que só atravancam o caminho da batalha. Além disso, há ainda um complicador: o que significa informação e seus verbos correlatos – informar e desinformar? Informação, no seu sentido científico original, é compreendida como uma grandeza física que não tem nada a ver com o universo dos significados que costumamos dar às palavras quando nos comunicamos. Por isso, em nossas conversações e discursos, o termo “informação” está carregado de ambiguidades. Se perguntarmos para as pessoas o que elas entendempor informação, as respostas só irão confirmar a vagueza com que é empregada. Ou seja, toma-se a palavra como se estivesse compreendida, mesmo tendo dela uma compreensão opaca. Em que sentido a palavra é tomada? Como sinônimo de saber, deconteúdo, deconhecimento, demensagem, de tema, de assunto? Existemtextos conceituais voltados para a discussão dessa questão, mas este não é o momento para seguir nesse caminho. O problema está colocado como um sinal de alerta relativo à nebulosa semântica que o termo “desinformação” empresta de seu antônimo “informação”. De todo modo, subsiste felizmente uma certa camada de compreensão que permite que ideias sejam trocadas quando a palavra “desinformação” é mencionada e seus efeitos discutidos. Passemos para o segundo tópico. Outra questão que costuma produzir tropeços no caminho do bem entender para melhor agir, é aquela que diz respeito à questão das mídias. Quando a palavra “mídias” é empregada, costumome perguntar, mas de qual mídia se está falando? Caso isso não seja discriminado, entramos, sem escapatória, em um outro nevoeiro semântico. Trazendo a questão para o contexto brasileiro, pois ela apresenta diferenciações geossemânticas bem demarcadas, até os anos 1990, “mídias” não fazia parte do vocabulário dos comunicólogos. SHUTTERSTOCK.COM

8 JANEIRO | JUNHO 2022 Até então, o império da cultura de massas só abrigava a expressão “meios massivos”. Foi a emergência da internet e das novas formas culturais estimuladas pela mediação computacional que fez surgir a expressão “novas mídias” em oposição às mídias tradicionais, também chamadas de “grande mídia”. Entretanto, o contexto dos anos 1990 estava longe de se reduzir a essamera dicotomia. O universo da comunicação já estava abrigando inesperadas misturas engendradas por uma cultura do disponível presente no narrowcasting, na TV a cabo, emdispositivos como vídeocassete, walkman etc., que já começavama desestabilizar a hegemonia da cultura de massas, preparando o terreno para os abalos sísmicos que a Web iria provocar nos processos comunicacionais e na cultura. Não é possível perscrutar a capilaridade da perversão informacional a que estamos assistindo, se não levarmos em consideração a evolução acelerada da Web nos usos humanos que propicia e que se instalou para embaralhar todas as cartas de todos os jogos, não só os da comunicação, mas tambémos da cultura, da economia, da política, com efeitos, inclusive, psíquicos. Hoje, já estamos vivenciando uma segunda idade da internet, ou seja, do salto da digitalização para a dataficação, que, aliás, já está sendo nomeada como era da inlife e do figital e que, de resto, prefiro chamar de fibiogital, para não nos esquecermos de que o biológico também faz parte do imbróglio. Quer dizer, as distinções, que operaram até há pouco mais de uma década entre mídias tradicionais e novas mídias, estão se dissipando em um novo universo de dispositivos, plataformas, aplicativos e multiplicação de telas. Passamos, portanto, de umecossistemamidiático para um ecossistema reticular, conectivo, interativo, expandido e ubíquo, no qual são compartilhadas crenças encapsuladas em bolhas pela ação dos algoritmos. As crenças, por sua vez, são alimentadas por uma sopa de emoções misturadas a afetos na sua maioria negativos e destrutivos, subsidiados por narcisismos patológicos. Diante desse cenário, muitos são aqueles a reconhecer que quanto menos a educação funcionar como um agente eficaz, portador de vida, mais o flanco se abrirá para a passagemdas comportas das fake news e sua consequente desinformação. Afinal, a razão primeira que promove a disseminação desmedida da desinformação não se encontra tão só e apenas na indústria maligna de bots, mas sobretudo na ignorância. Sem duvidar de que as iniciativas que estão sendo tomadas de combate à desinformação são, inegavelmente, capazes de funcionar como umnecessário contrapeso aos malefícios, é preciso constatar que a ignorância se constitui em solo fertilizado para o cultivo de crenças obscurantistas. Os complôs que funcionamnas redes são insuflados por fortes emoções, antagonismos e raiva porque faltam às bolhas a porosidade das incertezas e a busca do saber que só a dúvida e a curiosidade podem promover. São, por isso, fundamentais as preocupações relativas à educação midiática. Todavia, com o cuidado de evitar numerações para a Web, pois aWeb 3.0 que, há alguns anos, nomeava a Web semântica, hoje está sendo empregada para fins mais comerciais do que intelectuais, temos que concordar que, no estágio em que agora nos encontramos, reivindicar uma educação “midiática” soa ingênuo. Com exceção de alguns obstinados e renitentes que recusam o digital à maneira de novos ermitões, hoje estamos em redes, vivemos em redes, socializamos em redes, trabalhamos em redes, entretemo-nos em redes, amamos e odiamos em redes. Isso faz lembrar uma esplêndida palestra de Bruce Sterling, no Transmediale (Berlin, 2015), quando ironicamente declarava que, frente ao digital, você pode fugir para o deserto. Não obstante, “there is no “Se ‘notícias’ significam informações verificáveis de interesse público, então as informações que não atendema esses padrões não merecem o rótulo de notícias, e sim desinformação”

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 9 scape”. Diante disso, mais apropriado seria reclamar por uma educação para e nas redes, dado que as redes estão longe de nos agenciar no espectro da mesma lógica de funcionamento daquilo que chamávamos de mídias, velhas ou novas. Mas surgem aí dois novos complicadores. O primeiro complicador diz respeito ao fato de que, em um país como o Brasil, 30% da população está excluída das redes, não por vontade própria, por renitência ou por arrogância conservadora, mas por pura marginalização social, um problema que grita por justiça. O segundo complicador brota da necessidade premente de se colocarem em xeque os modelos tradicionais de ensino e aprendizagemclaramente obsoletos. Quando chamo a atenção para os abalos sísmicos provocados pela digitalização e dataficação, o uso da metáfora cumpre a tarefa de evidenciar que não se trata de modificações na superfície do visível. Embora as redes sociais continuem a provocarmuito frisson nasmentes incautas, tudo que realmente importa nas sociedades atuais está invisível aos olhos, o que nos coloca diante do desafio de apalpar o que não se vê e auscultar o que não se ouve, pois aí estão as chaves mestras que determinam os efeitos do imbróglio. Entre essas chaves encontra-se aquela que devemos buscar para nos abrir à compreensão de que é a própria ontologia do humano que está em transformação. Diante disso, as tarefas de uma educação para e nas redes não é para leigos ou principiantes por mais que sejam movidos por boas intenções e boa vontade. ■ lucia santaella é coordenadora da pós-graduação em tecnologias da inteligência e design digital, diretora do Centro de Investigação em Mídias Digitais (Cimid) e coordenadora do Centro de Estudos Peirceanos, na PUC-SP. É presidente honorária da Federação Latino-Americana de Semiótica e membro executivo da Associación Mundial de Semiótica Massmediática y Comunicación Global, México, desde 2004. Também é correspondente brasileira da Academia Argentina de Belas Artes desde 2002

10 JANEIRO | JUNHO 2022 Sessentaanosatrás,debutavaa ColumbiaJournalismReview porbaixode umasingelacapabranca.Emumensaiodeapresentação, “Porqueumarevista de jornalismo?”, oseditores sesentiramnodeverdeexplicaraos leitoresoque nãoeranadaóbvio: anecessidadedeumapublicaçãoparaanalisara imprensa. Escreveram: “Há (...) uma inquietação generalizada sobre o estado do jornalismo. A Review comparte dessa inquietação, não por uma suposta deterioração, mas pela probabilidade de que o jornalismo, seja qual for a modalidade, aindanão esteja à altura das complicações denossa era. (...)Os urgentes argumentos para um jornal crítico superamemmuito os perigos”. Complicações denossa era. Se aomenos aqueles editores soubessemoque estava por vir, das agitações culturais da década de 1960 até Watergate e a Guerra Fria, de crises econômicas à guerra ao terrorismo, chegando ao surgimento da internet e de mídias sociais. Dado tudo o que ocorreu desde então, énotável queos argumentos apresentadospelos editoresdaCJRseisdécadas atrás e, aliás, muito do teor da cobertura inicial da revista calem fundo hoje. Esta edição de aniversário da CJR vem mostrar o quanto o noticiário Estamos decididos a continuar por kyle pope diário se insere em uma cronologia muitomais longa. Certos temas nunca saemde pauta! Aedição inaugural da CJR faz uma análise da campanha presidencial Kennedy– Nixon de 1960, suscitando muitas das questões que pululam em nossas páginas hoje: sobre um suposto viés da imprensa e a dificuldade de cobrir um processo de apuração de votos arrastado e opaco. Considera um livro de título The Fading AmericanNewspaper, um indício da crise do jornalismo local que viria décadas depois. E critica repórteres de TV por se exibirem em coleAo comemorar Bodas de Diamante com os leitores, a CJR apresenta uma coletânea de matérias publicadas na revista ao longo de seus 60 anos, além de um especial sobre a cobertura da guerra entre a Ucrânia e a Rússia SHUTTERSTOCK Texto publicado na edição impressa da Columbia Journalism Review (60th anniversary - 2022), disponível em www.cjr.org

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 11 tivas de imprensa como presidente Kennedy, observando que a pergunta típica passara a ter 50 palavras em média desde que as coletivas começaram a ser televisionadas — da média de 14 palavras sob Franklin Delano Roosevelt. Aquibuscamos transmitiroescopo e a ambição da CJR ao longo de sua trajetória. O conteúdo está organizado por tema, não por ordem cronológica, paraajudar aunirospontos deumaeraparaoutra.Nesteespecial deaniversário, o leitorencontraráum debate entreopresidenteKennedy e a imprensa publicado na edição Fall 1961 — de um debate entre o presidente Kennedy e a imprensa. Publicamos também um artigo de Amy Davidson Sorkin discorrendo sobre momentosemqueaconfiançaéposta àprova, alémdacoberturadaGuerra do Iraquenos veículos de comunicação do Oriente. Nossas obsessões, é claro, mudaram no transcorrer dessas décadas; a cobertura da CJR amadureceu e cresceuno impressoenodigital.Mas nossa missão permanece a mesma. Por ocasião do décimo aniversário da CJR (não há gancho melhor do que um aniversário), a revista vasculhou os arquivos para publicar a coletânea Our Troubled Press. Na introdução, Elie Abel, então diretor daColumbia JournalismSchool, fez a seguintepromessa: “Estamos decididos a continuar”, escreveu, “levantandoquestõesqueoutrosnão levantam, discutindo problemas que não são discutidos em extensão ou profundidade em nenhum outro lugar. Nossapropostaé fazermais”.Anossa também. Então, que venhamos próximos 60 anos!■ kyle pope é editor-chefe e publisher da Columbia Journalism Review

12 JANEIRO | JUNHO 2022 por editores da cjr o desastre em cuba causado pela tentativa frustrada de invadir a baía dos Porcos, em1961, abriuumdosmais amplos debates entre o governo americano e a imprensa do país em muitos anos. Com efeito, a discussão trouxe à tona nos Estados Unidos uma questão que persegue a imprensa de muitos países em tempos de crise. Até que ponto a imprensa (e outras instituições) deve se tornar um instrumento da política do governo? Ou, invertendo a pergunta, a imprensa tem o direito de agir em descompasso com a segurança nacional? Iniciado emmeados de abril de 1961, o debate se dá de forma desarticulada e dispersa. Dada a suprema importância da questão, opiniões de ambos os lados são reunidas aqui em forma de diálogo. Todas as declarações apareceram previamente emmeios impressos. Presidente John Kennedy – Em várias ocasiões anteriores, disse – e seus jornais constantemente declaram – que estes são tempos que apelam para o senso de sacrifício e disciplina de cada cidadão. (...) Estou pedindo aos membros da profissão e da indústria jornalística neste país que examinem sua própria responsabilidade – que considerem o grau e a natureza do perigo iminente – e que atentem para o dever da autocontenção que esse perigo impõe a todos nós. Ao considerar cada informação, todo jornal hoje já se pergunta: “Isso é notícia?”. Estou apenas sugerindo que a isso se some outra pergunta: “É do interesse da segurança nacional?”. Jornalismo versus segurança Uma compilação de declarações do presidente John Kennedy e da imprensa discute o papel do jornalista e da notícia em situações de guerra. O debate foi publicado na edição Fall 1961 da CJR JohnHayWhitney, NewYorkHerald Tribune – O problema é que é impossível passar nesse teste. Se houvesse algum consenso possível em torno do que é do interesse da segurança [nacional] ou não, jamais teríamos tido a ameaça de censura, nem a constante luta de jornalistas pelo acesso a informaAMERICAN PHOTO ARCHIVE/ ALAMY/ FOTOARENA

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 13 ções que sejam legitimamente de interesse público. Presidente Kennedy – Não estou sugerindo qualquer nova forma de censura nemnovasmodalidades de informação classificada. NewYork Post – Quemdefine o que é do “interesse da segurança nacional”? (...) Não haverá quemdiga que reportagens que expõema injustiça econômica e social em nosso próprio país vão contra o “interesse da segurança nacional”? NewarkNews – A imprensa acredita queoacessoda sociedade à informação éumpilar deumgovernodemocrático.Aperguntaé:ondeessedireito se choca com a segurança nacional? Presidente Kennedy – O fato é que inimigos desta nação se gabamabertamente de ter obtido através de nossos jornais informações que, em outras circunstâncias, teriam

14 JANEIRO | JUNHO 2022 sido obtidas (...) por meio de roubo, suborno ou espionagem. Baltimore Sun – Muito dessa informação a cuja divulgação o presidente se opõe tem sua fonte, na verdade, noprópriogoverno—às vezes, empublicações oficiais, não raro em “vazamentos”. PresidenteKennedy– Detalhessobre preparativossecretosdestanaçãopara combaterpreparativossecretosdoinimigo foram disponibilizados a todo leitor de jornais, aliado ou inimigo. RoscoeDrummond, NewYorkHerald Tribune – Nãohádúvida, creioeu, de quepartedospreparativosda revolução cubana foi divulgada a ponto de dar ao regimedeCastro informações sobre o que estava por vir, quando e como… O governo dos Estados Unidosestava tãoempenhadoemocultar sua ajuda aos invasores cubanos que ogovernonão feznenhumpedidode censura voluntária na cobertura dos fatos pré-invasão. Newsday – Neste caso, a imprensa americana, incluindo nós, tem um grandemea-culpaa fazer. Foi, francamente, umerro, sobtodososaspectos. TurnerCatledge,TheNewYorkTimes – Se há algo que lamento, nesse episódio todo, é não ter começado bem antes a cobertura. Nossa principal obrigaçãoépara comnossos leitores. Eu sequer saberia como interpretar nossa obrigaçãopara comogoverno. NewYorkPost – Será queuma cobertura jornalística mais inquisitiva e ousada—aqui e emCuba—não teria dado (ao presidente) uma noção mais realista das fantasias militares nas quais a invasão foi baseada? James Reston, TheNewYorkTimes – É, de certo modo, lamentável que o presidente Kennedy tenha resolvido levantar esse problema de uma imprensa livre em uma guerra fria imediatamente após o episódio cubano. (...) O problema com a imprensa durante a crise cubana não foi que ela faloudemais,mas que dissemuitopouco. [Aimprensa] sabia o que estava acontecendo antes do desembarque (...), mas tinha muito pouco a dizer sobre a moralidade, a legalidade ou a utilidadeda aventura cubana quando ainda era tempo de detê-la. (...) Emvez disso, foi incentivada a divulgar informações falsas, o que na prática foi o que fez. Presidente Kennedy – Pretendemos assumir total responsabilidade por nossos erros; e esperamos que vocês apontem esses erros quando não enxergarmos. (…) O governo, em todas as esferas, deve cumprir sua obrigação de entregar a vocês a informação mais completa possível fora dos limites mais estritos da segurança nacional. David Kraslow, Miami Herald – E quandoogovernoachar que algoédo interessenacional,masaimprensa,não? Presidente Kennedy – Toda democracia reconhece as limitações impostas pela segurança nacional. (...) A dimensão e a potência, a localização e a natureza de nossas forças e armas foram divulgadas pela imprensa de forma suficiente a satisfazer qualquer potência estrangeira. Os jornais que publicaram essas reportagens são leais, patrióticos, responsáveis e bem-intencionados. Se estivéssemos travando uma guerra aberta, certamente não teriam publicado essa informação. Mas, na ausência de guerra aberta, se submeteram apenas ao teste do Um exército de 1,4 mil jovens – a maioria cubanos exilados treinados pela CIA – compunha a Brigada 2506, que fracassou na tentativa de invadir Cuba, tendo sido derrotada na praia Girón pelas tropas de Fidel Castro, 72 horas após o desembarque na ilha PHOTO 12 / ALAMY / FOTOARENA

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 15 jornalismo, não ao da segurança nacional. FelixMcKnight, presidentedaSociedade Americana de Editores de Jornais – Todo editor responsável enfrenta diariamente esse dilema editorial. WilliamC.Baggs, MiamiDailyNews – Umavez tomadaadecisãode segurar certas notícias, a pergunta seguinte é até onde ir e quando parar. PresidenteKennedy– Se a imprensa estiver aguardando uma declaração deguerrapara impor aautodisciplina exigida em circunstâncias de combate, posso apenas dizer que nunca nenhuma guerra representou uma ameaça maior a nossa segurança. Se a imprensa estiver esperando uma constatação de “perigo claro e iminente”, posso apenas dizer que o perigo nunca foi tão claro e sua presença tão iminente. Minneapolis Tribune – Circunstâncias de guerra fria e guerra aberta são parecidas, mas não completamente idênticas, e o exemploda censura durante uma guerra aberta não se aplica hoje. PresidenteKennedy – Nossomodo de vida, nossos valores estão sob ataque. Aqueles que se constituem como nossos inimigos estão avançando ao redor do globo. A sobrevivência de nossos amigos está em perigo. Minneapolis Tribune – Um conflito armado configura a mobilização maior de uma nação e muitas liberdades devem ser inibidas em nome da simples sobrevivência. Uma guerra fria, contudo, não configura um envolvimento tão pleno; ainda resta umúltimo passo: entrar em um conflito armado. Se nosso governo agir de maneira insensata, indolente ou irrefletida, podemos ser lançados a uma guerra nuclear mundial. O único meio de manter nossos cidadãos de olho em seus governantes nessa questão de vida oumorte é comumjornalismoalerta e responsável. PresidenteKennedy– Emtemposde perigo claro e imediato, a Justiça já determinouqueatéosdireitos supremosdaPrimeiraEmendadevemceder à necessidade de segurança nacional da sociedade. NewYorkHeraldTribune– Sobretudo emtempos de ameaça, opaís precisa de mais, e não menos, informação. Milwaukee Journal – A insistência do presidente Kennedy emuma atenção total e voluntária à segurança nacional pela imprensa do país nesses tempos, não menos do que emuma guerra aberta, é razoável e condizente. William Randolph Hearts JR., The HearstNewspapers– Ele deixa claro que estamos emuma guerra. Correspondente de guerra que fui, posso entenderanecessidadedesegurança. PresidenteKennedy– Se a imprensa americana vier a considerar e recomendaraadoçãovoluntáriadenovos mecanismos oumedidas específicos, posso garantir que iremos cooperar plenamentecomessasrecomendações. Philadelphia Inquirer – Pode ser aconselhável, do ponto de vista da atividade jornalística, que o governo crie um “bureau de informações sobre a guerra fria”, que não teria poder de censura, mas poderia servir como uma central de consultas da imprensa sobre o que constitui violação da segurança nacional em casos específicos. New York Herald Tribune – Não há necessidade demais organismos de restrição. McKnight – Nossa opinião é que não há necessidade disso no momento. PresidenteKennedy – Que não haja qualquer recomendação. E que não haja resposta para o dilema enfrentadoporuma sociedade livreeaberta em uma guerra fria e secreta. ■ os editories são jornalistas que compõem a equipe de redação da CJR “Em tempos de perigo claro e imediato, a Justiça já determinou que até os direitos supremos da Primeira Emenda devem ceder à necessidade de segurança nacional da sociedade” Texto publicado na edição impressa da Columbia Journalism Review (60th anniversary - 2022), disponível em www.cjr.org

16 JANEIRO | JUNHO 2022 por michael specter “ike, como você sabe disso?” Bob Johnson, chefe da sucursal da AP em Dallas, fez a pergunta a James “Ike” Altgens, um de seus fotógrafos, em 22 de novembro de 1963. Estavam dizendo que o presidente John F. Kennedy, que estava em visita à cidade, sofrera um atentado, mas a informação não fora confirmada. Johnson tinha começado a redigir uma nota, mas não passara do cabeçalho com local e data. Seus dedos estavam a postos, à espera de informação. Altgens tinha uma resposta: “Eu vi. Tinha sangue no rosto dele. A Sra. Kennedy gritou: ‘Ai, não!’”. O diálogo entre Altgens e Johnson foi reproduzido no texto “The Reporters’ Story”, publicadona ColumbiaJournalismReview no fimde 1964. Éuma compilaçãode relatos emprimeiramãode jornalistas que cobriramo assassinatodurante seudesenrolar – antes quequalquerumsoubesse aocertoque fora um assassinato. É, sob muitos aspectos, um retrato da época, a começar pela descrição do empurra-empurra entre repórteres para ter acesso a um radiofone e pela alusão a esses jornalistas como “homens que acompanhavam a comitiva presidencial em Dallas”. É verdade que também havia mulheres, incluindoMarianneMeans, daHearstHeadline Service, que passou aos colegas a informação de queKennedy tinha sido baleado e estava no ParklandHospital. “Quando a senhoritaMeans disse essas palavras – nunca soube quem lhe disse –, tive certeza absoluta de que era verdade”, contou TomKirkland, editor-executivodo DentonRecord-Chronicle. “Todomundo teve. Corremos para os ônibus da imprensa.” A réplica a “como você sabe?” é outra pergunta: em quem você confia? Como você sabe? Amy Davidson Sorkin discorre sobre momentos emque a confiança é posta à prova nomeio jornalístico Revisitar a cobertura de crises nas páginas daCJRé lembrar que a confiança é produto de uma negociação incessante entre a imprensa, o públicoe aqueles que estãonopoder. Emnovembrode 1963, assessores da Casa Branca subiram repórteres ao Air ForceOnepouco antes de a aeronavedecolar deDallas para testemunhar LyndonJohnson sendo empossado como presidente – um reconhecimento de que a legitimidade não podia ser dissociada da transparência. Na edição do inverno de 1968/69, Thomas Whiteside escreveu sobre os protestos e a brutalidade da polícia durante a ConvençãoNacional do PartidoDemocrata emChicago; uma evidência de que o então prefeito, RichardDaley, tinha adotado “uma política deliberada” de impedir a cobertura era a dificuldade de jornalistas de reservar vagas em estacionamentos privados (“em geral, os donos têm prazer em cooperar com emissoras de televisão”). Tinha coisa ali, não era normal. Mesmo assim, quando a polícia partiu para cima de manifestantes – e de jornalistas – no Lincoln Park de Chicago, as câmeras estavam registrando. Quando James Strickland, um cinegrafista negro, diz à polícia que é da emissoraNBC, a resposta, conforme relatada pela CJR, é “Seu negro filho da puta, vamos matar você antes que a noite acabe” (atingido no rosto, ele sobreviveu). Mas umprodutor diz a Whiteside que “toda vez que acendemos as luzes, reduzimos a violência à nossa frente”. Muitos acontecimentos dos últimos anos –especialmente a resposta

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 17 GL ARCHIVE / ALAMY / FOTOARENA O presidente John Kennedy desfila pelas ruas de Dallas, no Texas, minutos antes de ser assassinado, no dia 22 de novembro de 1963 Martin Luther King em coletiva de imprensa durante as marchas de protesto de Birmingham, no Alabama (EUA), em 1963 ARQUIVO CJR/ BRUCE DAVIDSON/MAGNUM

18 JANEIRO | JUNHO 2022 ao assassinato de George Floyd nos Estados Unidos – reforçarama tese de que documentar faz diferença, ainda que o ecossistema maior da confiança pública esteja em condiçãoprecária.Manifestanteshoje têm sua própria câmera; praticamente não há consenso sobre o que é jornalismo. Questões de identidade e propósito, no entanto, não são novidade: em 1969, quando perguntaram a Walter Lippmann – fundador da The NewRepublic, vencedor de dois prêmios Pulitzer e autor de PublicOpinion – emumsimpósio na Columbia JournalismSchool como “meios demassa”deveriamapresentar temas complexos aopúblico, opai do jornalismo americano moderno disse: “Primeiro de tudo, não sei o suficiente sobremeios demassa. Sei umpouco sobre jornalismo, mas sei muito pouco sobre a radiodifusão”. E o que via o deixava “totalmente insatisfeito quase sempre”. Parecia tudo muito “dramático”. Jornalistas não baixaram o tom; talvez não devam, nunca. Quando governo e imprensa se enfrentam, cada lado aposta no que o público vai pensar. Em1961, depois da debacle da baía dos Porcos, Kennedy atacoua imprensapornão ter silenciado em nome da segurança nacional. Esse conflito – entre não só o que a imprensa sabe, mas o que deve revelar – é uma constante, assim como o governo confundir segurança com passar vergonha. Em1971, o governo Nixon conseguiu uma liminar para impedir o NewYork Times de publicar trechos dosDocumentos doPentágono, cuja grande revelação era a extensão da mentira contada por sucessivos governos para ocultar o que de fato ocorria noVietnã. O New York Times ainda brigava contra a liminar, que a SupremaCorte acabaria derrubando, quando o WashingtonPost começou a publicar trechos da papelada. Como observouGloria Cooper ao analisar o livro dememórias da então publisher do WashingtonPost, KatharineGraham, de 1997, essa decisão–umamescla de solidariedade, petulânciae faro jornalístico aguçado – alçou o Post à cena nacional, antesmesmodeWatergate. Para Cooper, o que diferenciava Katharine Graham de seu marido, Philip, que chefiara o jornal até seu suicídio, em 1963, não era que ela tinha menos experiência, mas que Philip era próximo demais de JFK. A proximidade tinha distorcido sua compreensão de seu papel. Sua mulher não estava, como ele, bolando estratégias com Kennedy na convenção de 1960. Mas, como jornalista, ela era melhor. Na edição de novembro/dezembro de 2001, a CJR publicou um texto de Nick Spangler, um então aluno da Columbia Journalism School que estava a poucas quadras do World Trade Center naquela manhã de 11 de setembro (hoje, é repórterdojornal Newsday.)Seutítulo é“Witness”(Testemunha) e, comono caso de Altgens, hámuito que Spangler pode testemunhar, incluindo o som do impacto no solo de uma mulher loira com saia verde da cor domar (“Não pude ver o rosto dela. Não diria que queria ver, mas achei que era importante.”). Boa parte do texto, no entanto, é sobre a busca de Spangler, entre nuvens de poeira, por gente que tivesse visto mais do que ele. Walter Lippmann, em sua conversa comestudantes de jornalismo, se mostrava cético sobre a capacidade do público de lidar coma complexidade. A esperança é que não estivesse totalmente correto sobre isso. Lippmann parecia, isso sim, ter profunda fé na capacidade do público de, como ele disse, “dizer sim ou não”. E, em um tema crucial à época, a guerra no Vietnã – razão das manifestações em Chicago –, Lippmann identificou como a confiança é, em última instância, posta à prova: “Com relações públicas, não foi possível fazer nada sobre a Guerra do Vietnã”, disse. “Até tentaram. Johnson provou toda técnica que pôde para ocultar a guerra e, depois, para torná- -la aceitável. E não deu certo.” Ou seja, quando você sabe, você realmente sabe! ■ amy davidson sorkin ingressou na revista The New Yorker em 1995 e é redator da equipe desde 2014 “Esse conflito – entre não só o que a imprensa sabe, mas o que deve revelar – é uma constante, assim como o governo confundir segurança com passar vergonha” Texto publicado na edição impressa da Columbia Journalism Review (60th anniversary - 2022), disponível em www.cjr.org

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 19

20 JANEIRO | JUNHO 2022 por paul mcleary contexto: desde o início daGuerra do Iraque, emmarço de 2003, até a publicação deste artigo, na edição da revista CJR de março/abril de 2006, mais de dois terços dos jornalistas mortos em solo iraquiano eram naturais do país. dias antes de eu conhecer salih no iraque, ele passara a ser um foragido. Atuando como stringer (colaborador) para o The Washington Post em Tikrit, ele tinha trabalhado na apuração de uma reportagempublicada em13 de janeirode 2006, identificando autoridades locais deTikriti que, segundoo texto, tinhamsaqueadoumcomplexodepalácioserguidoporSaddamHussein. Oepisódio, assimcomotantacoisaquedeuerradonoIraque, teminíciocom oque, emtese, devia ter sidoumsinal deprogresso. Emnovembrode2005, as forças americanas emTikrit armaram um verdadeiro circo para devolver os paláciosaos iraquianos. Poucodepois, aose inteirardos saques, Salihfoi cobrir o caso – umdos vários stringers do Post destacados para a tarefa. Tendo conferido in loco adestruição, fezumrelato ao jornal, quepublicouumtexto atribuindo a culpa a forças iraquianas e a JassamJabara, chefe da força de segurança local. Jabara, que já não gostava de Salih por uma reportagemanterior, odiou. E, segundo fontes de Salih, colocou sua cabeça a prêmio por US$ 50 mil. Salih fugiu de Tikrit e até hoje não voltou. A situação de Salih, embora extrema, se repete na vida demuitos iraquianos que colaboram com veículos de imprensa estrangeiros nesse desafortunado país. Como Iraquemergulhando cada vezmais noqueparece ser umespasmo interminável deviolência,muitos jornalistasde fora foramobrigados abaixar a Fogo amigo Como os jornalistas locais cobriram a Guerra do Iraque para os veículos de comunicação do Ocidente bola,deixandoseusredutosprotegidos sóporcurtosperíodoseaindaassimsó comtradutor,motorista eumguarda- -costas a reboque. O resultado é que dependem cada vez mais de stringers iraquianos para apurar informações. Issonãoquerdizerqueosestrangeiros nãosaiam–saem,dentrodopossível–, mas que, dada a violenta realidade no Iraque,hámomentosemquesimplesmente não é viável para eles circular. Para stringers iraquianosquearriscama própria vida e emgeral têmde ocultar o que fazem de amigos e da própria família, sem sequer a glória de umcrédito emreconhecimento, a respostaàperguntadeporque fazem issoécomplicada.Emumpaísempobrecido por décadas de guerra, ditadura criminosa e sanções internacionais, odinheiroemgeral eraogrande atrativo, aomenosno início. Recrutados das fileiras de profissionais com ARQUIVO CJR/ AKRAM SALEH/GETTY IMAGES

REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 21 formação universitária – contadores, professores, médicos, especialistaseminformática–, stringers podem, às vezes, mais do que dobrar o que ganhaumiraquianomédionoIraque do pós-guerra. Mas, paramuitos, depoisdemeses eagoraatéanosatuandonanovaprofissão, o incentivo econômico parece terdado lugar aumaapreciaçãomais profunda – fervorosa, até – da capacidade do jornalismo de relatar fatos importantese,àsvezes, fazerdiferença. ComodisseYousif, um stringer de 24 anos queme pediupara não dar nem seu sobrenome nem a empresa para a qual trabalha, “os americanos precisamsabercomoos iraquianosestão sofrendo.Hámilhõesdehistóriaspor aí, mas o problema é a segurança. É perigososairelevantarainformação”. E é mesmo. Segundo o Comitê de ProteçãodeJornalistas, dos 61 jornalistas mortos no Iraque desde o início da guerra emmarço de 2003 até fevereiro de 2006, 42 eram iraquianos. Além deles, 23 trabalhadores da mídia – motoristas, tradutores e outros–forammortosnoIraque.Uma das vítimas mais recentes foi Allan Enwiyah, que trabalhava como tradutor para Jill Carroll, colaboradora do Christian ScienceMonitor, e que foimorto a tiros durante o sequestro da jornalistanodia 7de janeiro. Yousif e Enwiyah eram amigos. Salih, do Post, éoúnico stringer iraquiano que conheci que tinha trabalhado como repórter antes da guerra. Corpulento no alto de seus 30 anos, cabeçaraspada,olhosgrandeseexpressivos,elechegouao Post hápoucomais deumano.Naépoca,estavatrabalhando emumdosinúmerosjornaisquesurgiramapósa invasão, esoubequeo Post estava atrás de umcolaborador local. Falando coma ajuda de umtradutor emuma casa protegida por guardas armados à frente, contou a história de seu entrevero com Jassam Jabara. Tudo começou em agosto de 2005, quandoSalihajudouaapuraro caso de umhomemquemorrera sob custódiaapenascincohorasdepoisde ter sido detido pelas forças de segurança de Jabara. Segundo Salih, um dia antes de amatéria sair, umprimo deJabara veiovê-lopedindoquenão fossepublicada–esugerindoque, seo fosse, “Jassampodefazervocêdesaparecer”.Amatériasaiunodiaseguinte eJabara foi sequeixar aogovernador deTikrit,pedindoqueprendesseSalih. O governador se recusou. Três dias depois, disseSalih, “umaBMWpreta parou na minha frente e dela saíram dois homens, um com uma pistola e outrocomumabarrademetal.Tentarammecolocaràforçanocarro.Resisti

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