TRAJETÓRIA REVISTA DA ESPM | EDIÇÃO 124 | 2022 52 outros poderes e partidarização das correntes ideológicas em conflito no país. Em decorrência desta reconhecida interferência no exercício das atividades de outros poderes, alguns juristas têm se levantado — não muitos, pois a maioria dos advogados e doutrinadores, que também militam na advocacia, não pretende indispor-se com aqueles que julgam seus processos — sempre com a elegância própria que deve formatar os debates jurídicos, procurando mostrar aos ínclitosmagistrados da Suprema Corte que tal posicionamento põe em risco a própria estabilidade das instituições. Mantém-se uma permanente e desnecessária tensão, principalmente quando a invasão de atribuições de outros poderes ostenta nítida preferência por uma das ideologias em choque no país. Alguns juristas admitem tal intervenção, que se pode explicar por um direito auto-outorgado pelos eminentes julgadores da Suprema Corte de atuar nos vácuos legislativos ou corrigir os rumos do Executivo, quando entendem que o Legislativo não legislou como deveria ou o Executivo seguiu o rumo que não lhes agradou. Francesco Ferrara, emseu livro Interpretação e Aplicação das Leis, em1933, já dizia que o víciomaior do intérprete é colocar na lei o que na lei não está por preferências pessoais, ou dela tirar o que nela está, por antipatia ao dispositivo. Emrecente pesquisa da Folha de S.Paulo a respeito da visão do povo sobre os três poderes e se o Poder Judiciário colocava em risco a democracia no Brasil, 63% dos entrevistados disseram que sim. Trata-se da avaliação popularmais depreciativa da Suprema Corte, depois da Segunda Guerra Mundial. Nunca se põe em dúvida nem a idoneidade nem o conhecimento jurídico de S.Exas, mas o protagonismo para alémdas competências delineadas pela Constituição é que tem gerado avaliação tão negativa. Lastreiamaqueles que apoiamtal postura da Suprema Corte, normalmente adeptos da mesma corrente ideológica que parece ser aquela que é adotada pelamaioria dos senhores ministros — digo “parece” porque não sei o que pensam, mas apenas avalio o teor das decisões —, no consequencialismo jurídico, no neoconstitucionalismo e na jurisprudência constitucional que permitem tal comportamento. Reconheço que são correntes respeitáveis e discutidas em todo o mundo e que dariam um respaldo doutrinário a esta postura. Ocorre que o colegiado que aprovou a Constituição não encampou tais correntes doutrinárias, tendo hospedado a clássica divisão de poderes deMontesquieu e estabelecido exaustiva enunciação da competência de cada um. Participei de audiências públicas, a convite dos constituintes, durante o período de elaboração da Constituição,mantendo, durante 20meses, permanente contato como relator e opresidentedaAssembleiaConstituinte e comentei a Carta da República, durante dez anos, com Celso Bastos, em 15 volumes, totalizando cerca de dez mil páginas. Assim é que a Constituição, em seu artigo 103, § 2º, não permite, nemmesmo nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, que o Judiciário legisle, estando dispositivo assim redigido: “§ 2ºDeclarada a inconstitucionalidade por omissão demedida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”, assim como definiu que o Congresso tem obrigação de zelar por sua competência legislativa, conforme o artigo 49, inciso XI, cuja dicção é a seguinte: “Art. 49. Éda competência exclusivadoCongresso Nacional: […] XI — zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. Infelizmente, nemo Judiciário fica apenas nas linhas de atribuições permitidas pela Lei Suprema, nem o Legislativo temolhado por sua competência normativa, perante o Judiciário. Em tal cenário que vivemos no momento, a insegurança jurídica com a liberdade de expressão, prisões Francesco Ferrara já dizia que o víciomaior do intérprete é colocar na lei o que na lei não está por preferências pessoais
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