Revista da ESPM JUL-AGO_2009
R e v i s t a d a E S P M – julho / agosto de 2009 106 Relações de consumo e relações internacionais uma nova característica estrutural, a constituição de cadeias produtivas e cadeias de consumo de caráter global como seu “modus operandi” característico. Trata-se de algo mais específico que a já tradicional di- nâmica de internacionalização de empresas, celebrizada pela atuação de empresas multinacionais ao logo da segunda metade do século XX. O que se consolida agora é a atua ção de empresas com estratégias globais para todas as etapas de sua operação, da concepção ao pós- venda, passando pelo planejamento, financiamento, fabricação, distribui- ção, publicidade e venda, e o que vier depois. Todas elas cuidadosa- mente alocadas nos pontos mais competitivos do espaço econômico constituído em redes, com nós pro- dutivos instalados, livremente, em pontos de interesse do planeta, em função da tecnologia e da desregu- lamentação. Dessa forma, as cadeias produtivas se revelam tão alongadas, tão globais, que o momento de con- sumo acaba relacionando-se com dimensões e variáveis inesperadas. O consumo pressupõe agora rela- ções muito mais extensas. Se as relações de consumo haviam amadurecido sua institucionalização no ambiente finito das tradicionais economias nacionais, ali desenvol- vendo, por exemplo, os parâmetros atuais do direito do consumidor, hoje, novos usos e implicações surgempara esses códigos, que vão muito além da garantia do sagrado direito de, aqui agora, ser bem atendido. Nesse novo campo do Direito 2 , inte- resses diversificados, de produtores e consumidores, se confrontam e são definidos tendo por base as relações da oferta, sejam elas de bens ou de serviços, tangíveis ou intangíveis, com seus consumidores, ou seja, com aquilo que tinham como expectativa de consumo. Nesse novo campo que surge em defesa dos “direitos”, abre-se algo oriundo de uma nova esfera pública, no sentido utilizado por Habermas (1984) 3 , na qual o cidadão transforma-se em consumidor e nessa nova condição passa a disputar uma “nova cidadania”. Mas uma cidadania bem peculiar, com novos fundamentos e novos parâmetros, onde a garantia dos direitos se apega numa espécie de derradeira instância dos direitos: o direito de consumir. Se o antigo Es- tado moderno se encontra em crise civilizatória, as formas tradicionais do Direito, inclusive do “direito cidadão”, também se encontrariam em crise e necessitariam de novo período de adaptação. Assim, os chamados direitos políticos de pri- meira geração, tais como liberdade e igualdade, também parecem ter que se adaptar às realidades da “nova sociedade de consumo” e, em direções diversas, o direito evolui. Numa de suas vertentes se espe- cializa na defesa dos direitos do consumidor, exigindo do produtor, em contrapartida, que este também se ampare nesta “nova existência” das relações sociais de produção. O ativismo civil parece, assim, se re- posicionar e voltar sua atuação para bases mais cotidianas, mudando o foco da proteção do cidadão para a proteção e defesa do consumidor. O consumidor se transforma em ator político, e parecemos viver numa sociedade composta, cada vez mais, por consumidores. Sintoma dos tempos, essa tendência se manifesta em fenômenos apa- rentemente desconexos. Ao mesmo tempo em que as instituições repre- sentativas parecem se afundar na sua crise de legitimidade, e que se amplia o desinteresse pela política e pelos políticos, por sua vez, os parti- dos políticos parecem não perceber o “gap” existente, e nem de perto, hoje, se constituem em espaço de reivindicação social. Depois da der- rota do “welfare state”, as pressões para a diminuição da presença do Estado muito enfraqueceram sua capacidade de garantir os níveis básicos de bem-estar, ficando essa demanda, na maior parte das vezes, atendida por iniciativas fragmenta- das, de base local e, quase sempre, paternalistas. Na falta do Estado moderno e com capacidade de im- plantar políticas universalizantes, ou seja, baseadas no “direito cidadão”, decrescem os ativismos tradicionais, constitutivos da esfera pública, e floresce verdejante um “novo ativis- mo” que clama também por direitos, demanda sempre intacta por justiça, mas agora defendidos na esfera pri- vada, quando não na esfera íntima, do consumo. Assim, essa nova militância social aporta uma nova geração de reivindi- cações, em nome dos direitos de ser bem atendido pelas empresas, pelos direitos de poder bem consumir. Ou seja, se o consumo é privado, também a produção perde seu caráter social e o consumo tutelado pelo Estado passa a se confrontar com o direito privado.
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx