Revista da ESPM Julho-Agosto_2010

R E V I S T A D A E S P M – julho / agosto de 2010 80 As casas dos moradores de rua não são delimita- das por paredes e muitas vezes nem por objetos, mas pelo significado que atribuem a cada um dos lugares. Nesse contexto, um amontoado de caixas e livros, acompanhados por um papelão no chão, cobertos por um saco plástico, podem fazer as vezes de quarto, enquanto uma fogueira torna-se cozinha e uma garrafa pet cortada ao meio, cheia de água suja e com um sabonete já gasto, constitui umbanheiro. Afidelidade comos locais de dormir e comer garante que tenhamum espaço para si, como qual também criaramuma espécie de relacionamento, seu lugar sagrado, mas que não é de propriedade exclusiva, é um espaço público. Por estarememsituaçãodeexclusãoda sociedade, os moradores de rua poucas vezes são vistos e, desta forma, não são considerados de fato como sendo parte dela. Essas pessoas não são apenas habitantes do es- paço público, são os habitantes das sombras do mun- do. Vivemà sombra dos edifícios das grandes cidades, por exemplo. São as desordens crônicas de uma modernidade que os considera como bárbaros. “Os bárbaros que atacaram a civilização já vieram, em outros tempos, de fora dasmuralhas.Hoje emdia eles brotamdenossos colos”, como destaca James Hillman (1993), ao discutir a questão das sombras da sociedade, presentes, principalmente, nas grandes cidades. Quando a sociedade não sabe lidar com o dife- rente, relega-o ao esquecimento. Porém, para Hillman, ele ressurge sob forma de desordens crônicas da sociedade. O morador de rua seria um exemplo dessa desordem crônica, já que por não ter condições econômicas e sociais de sobreviver, vive à margem da sociedade. O dia seguinte é uma incerteza, a falta de previsibili- dade é uma constante. O homem precisou fixar-se em um local para poder sobreviver, plantar, criar animais e criar seus descendentes. Quando essa fixação não ocorre, nãohá tambémos aspectos de civilização, criada pela vida em aldeias. O morador de rua continua nômade como o vento, não tem como apreender o mundo que o cerca. Sua existência é fluida e não deixará vestígios, pois não há uma mediação que o faça. Ele é o retorno ao nosso antigo espírito nômade, que acompanhava o vento, seu espaço-tempo é o de caminhar, como apontaNorval Baitello Júnior emseu texto“Vilém Flusser e a Terceira Catástrofe do Homem ou as Dores do Espaço, a Fotografia e o Vento” (2004). A racionalidade da vida moderna trouxe para dentro de si a possibilidade de se conviver com o que ao mesmo tempo se considera absurdo: a falta de um local digno para se viver, de comida e de saúde. A negação dos direitos mais básicos e essenciais a um grupo populacional tornou as próprias vítimas em seres invisíveis. A contem- poraneidade não é apenas umcenário onde esse grupo reside, é, antes de tudo, um pré-requisito para que ele exista. A modernização e o avanço das tecnologias, que poderiame deveriamsupe- rar apobreza existentena sociedade, propiciando emprego, moradias, alternativas e condições de saúde para as classes menos favorecidas, fazem comque essa pobreza só aumente. Nossa época, } Como nós não vivenciamos a rua, ela deixa de ser lugar para ser espaço. Não existe forma de vínculo com o espaço e se aquela pessoa está no espaço, também ela não é vinculável porque ela é um objeto daquele espaço. Se aquilo fosse um lugar, você teria uma relação positiva ou negativa. Para o morador de rua é lugar, mas para a sociedade não. Ele estabele- ce o vínculo, este que é julgado como negativo ou insuficiente. Ele entende aquilo como a casa dele, ele tem vínculo com o lugar. Só não existe a propriedade de fato, no cartório. ~ 2 ( ( Omoradorderuaéexem- plo de desordem crônica, que não possui condição econômica e social para sobreviver, vive à mar- gem. Odia seguinte, uma incerteza, a falta de previ- sibilidade, umaconstante.

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