Revista da ESPM MAI-JUN_2008

66 R E V I S T A D A E S P M – MAIO / JUNHO DE 2008 Monteiro Lobato, que desde Urupês tinha tudo para ser reconhecido como o verdadeiro pai do mo- dernismo literário brasileiro, prati- camente parou de escrever para gente grande desde a viagem de retorno ao Brasil, no início de 1931. Obcecava-o a descoberta da vo- cação de empreendedor industrial, na qual pensava colher saborosos frutos e só amargou urtigas. Tendo cumprido metade da pena a que foi condenado (alguns poucos in- telectuais corajosos, Rosalina Coe- lho Lisboa à frente, conseguiram anistiá-lo) o que encontrou fora da cadeia foi a falência, tanto a pes- soal como a de seus projetos. Como vinculara ao sucesso da identi- dade nacional à realização de sua própria identidade, não via sentido em viver sem objetivo. Confuso em seu desencanto, atribuiu o malogro da empreitada àmá formação da raça, damestiçagemcondenada por velhos mestres como o Conde de Gobineau, uma “ausência de raça” que a seu ver condenou o país, desde a origem, a nunca poder formar Nação. Caiu na mais profunda descrença ou neurose, no dizer de alguns biógrafos, mesclada à amargura pela perda dos filhos. “Não creio em mais nada”, confessa dois dias antes de morrer (Conferências). Os sucessivos insucessos na vida em contraponto com a boa vendagem de livros infantis jáhaviamlevadoMonteiro Lobato a buscar conforto – e recupe- ração financeira – nas amenidades da literatura infantil. O Sítio do Pica-pau Amarelo dá-lhe a oportunidade de constatar, com ironia, que empresários ganhamdinheiro e escritores o perdem, mascomelehaviasepassadojustamente ocontrário.Terminouestoicamente seus dias no apartamento emprestado pelo grandeamigoeeditorCaioPrado Júnior, proprietáriodaEditoraBrasiliense.Aeste testamentou, comoherançadegratidão, os direitos autorais de sua obra. Num olhar retrospectivo – aliás, pensar emMonteiro Lobato é sempre contem- plar um dado país e uma dada época que já se esbateram nas ruínas do passado –, avulta o seu fascínio pelas contradições, odesprezopelacoerência consagrada por uma sociedade que não lhe inspirava nenhum respeito. Tal desapegoaopensamentoconvencional lhe confere ares pós-modernos. Suas posições eramretilíneas dentrode dada situação e momento, controvertidas se olhadas de outro ângulo. Dono de um pensamento paradoxal, muitas vezes tomaaconfiguraçãodeumaampulheta, apontando tanto para cima como para baixo, em circunstâncias diferentes. O Lobato ultraliberal que agride a di- tadura do Estado Novo, que escreve, agita o público e vai para a cadeia por insistir no sagrado dom da liberdade, é o mesmo defensor da concepção de Estado-forte, de umsistema vertical que sejacapazdepromoveroprogressosem pruridosdemocráticos,ideaispositivistas que herdou de Comte, Spencer e da influência elitista do avô, o Barão de Tremembé. Exacerba a idéia de Louis Couty e Sílvio Romero de que o Brasil não tempovo: “No nosso corpo corre o sanguedos400degredadosportugueses que vieramcolonizar ‘isto’ comoTomé de Sousa, misturado com a negrada de Angola e os sórdidos índios tapuias. Esperar qualquer coisa de semelhante saladaé ser desassisado” (CartaaHenri- que Rupp Jr, 1935). A admiração pelo verticalismo político está presente nos elogios à planificação socialista daUnião Soviética e, em tons de espantoso panegírico, no livro não incorporado à sua obra completa La nueva Argentina , entusiasmada apolo- gia do ditador Perón (publicado sob o pseudônimo Miguel P. Garcia. Buenos Aires,Acteon, 1947). Se foi umtrabalho de encomenda (como a imprensa da época acusou), causa efeito de brutal contraste com o Monteiro Lobato de 1934, resistindo à sedução de Vargas. Um verdadeiro impasse ético: seria Confuso em seu desencanto, atribuiu o malogro da empreitada àmá formação da raça, damestiçagemcon- denada por velhos mestres como o Conde deGobineau, uma “ausência de raça” Reprodução do quadro “ O mulato” de Cândido Portinari

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