Revista da ESPM MAI-JUN_2008

67 MAIO / JUNHO DE 2008 – R E V I S T A D A E S P M Humberto Marini Filho Imagens cedidas pelo: Instituto Moreira Salles possível um homem que sacrificou tantas comodidades para manter-se íntegro na trincheira de suas verdades ter emprestado seu talento literário para enaltecer um sistema ou um político com os quais nada tinha a ver? Lobato, ao retornar daArgentina, não repudiará a autoria do livro, mas negará ter feito mera propaganda, pois “só diz o que pensaeescreveoquequer, noBrasil, na Argentina, nos Estados Unidos” (Jornal de São Paulo, 18 de janeiro de 1948). Tantos labirintos recomendam ao lei- tor de Monteiro Lobato que deixem as contradições se acomodarem nos refolhos da natureza complexa do es- critor. Melhor não forçar o encaixe de arestas inconciliáveis, visando a obter um perfil histórico confortável, como faza iconografiaoficial, aquelaque forja medalhões falsos. Talvezaperspectivamaisadequadapara Monteiro Lobato seja admirá-lo como um ícone imortalizado num passado que parece cada vez mais distante. Seu estilo de fazer polêmica resistiu enquantohouveditadurase redemocra- tizações convencionais, alternâncias básicas do ciclo político brasileiro nos últimos oitenta anos, do Estado Novo até o fim do regime militar. O que se tem agora é diferente. Não faz sentido aondadoneoliberalismo globalizador devolver à praia oobstinado individua- lismo que, antes, os regimes fortes tiveram de silenciar à força. O tempo passou e, junto com ele, os embates pela identidade nacional. A desistência de Lobato em um dia encontrar o ser brasileiro (deixemos de lado a premissa da mestiçagem como umcacoetede época) hojemais parece umaantevisãodo futurodoque simples abdicação. Com efeito, a pós-moder- nidade celebrada vinte anos após sua morte (lá por 1968, com o Levante de Maio em Paris) decretou o fim não só da identidadenacional comodaprópria palavra “identidade”, pelo menos na amplitude até então conhecida. Convenciona-se hoje que o homem esteja sofrendo duplodeslocamento : de seu lugar no mundo sociocultural e de si mesmo. Descontinuidades, rupturas e fragmentações culturais substituem a antiga idéia de centro por “uma plurali- dade de centros” que se intercambiam velozmente, impedindo fixações, ra- cionalizações e, conseqüentemente, teorias que resistammais que os quinze minutos de Andy Warhol. O homem ocupa novas posições de minuto em minuto e a fluidez do processo marca diferentes “posições de sujeito”, isto que se chamava “identidade” e tinha pretensões a permanência. QuemleuegostadeLobatoescritorpara adultos pertence a alguma geração já entrada em anos. O natural é que suas candentes diatribes sobre a economia e política como geradores da identidade nacional tenham se tornado anacrôni- cas, exatamente como ele próprio vaticinara ainda em1904, ao comen- tar em A Barca de Gleyre o então es- trondoso sucesso de Canaã , deGraça Aranha, que discutia a imigração: “Será um grande livro enquanto perdurarem os nossos problemas (...); depois irá morrendo”. Omesmoacontece como recall de sua literatura infantil. O Sítio do Picapau Amarelo permanece imortal como os Contos de Andersen e O Gato de Botas , nos domínios do maravilhoso intemporal que lá um belo dia habita- mos.Aopúblico infanto-juvenil dehoje, habituado à vertigem eletrônica doYou Tube e Orkut, as personagens do Sítio do PicapauAmarelo devemparecer in- OSítiodoPicapauAmarelopermaneceimortal como os Contos de Andersen e O Gato de Botas,nosdomíniosdomaravilhosointemporal que lá um belo dia habitamos.

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