Revista da ESPM MAI-JUN_2008
69 MAIO / JUNHO DE 2008 – R E V I S T A D A E S P M Humberto Marini Filho HUMBERTO MARINI FILHO Mestre em Literatura Brasileira e doutor em Comunicação e Cultura (UFRJ) ES PM isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha depressa. Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente preto! Acontecem coi- sas tremendas, mas vence por fima in- teligência do branco. Conseguem (sic) pormeio dos RaiosN, inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes dêem pela coisa”. Lobato retardou por dois séculos a visão da raça negra ascendendo ao poder político, algo que está se es- boçando agora nos Estados Unidos e parecia impensável até Bush. Mu- dou o nome do livro (inicialmente seria O Raio Louro), e deliciou-se com a travessura de extirpar a raça negra por esterilização genética voluntária (mas não consciente). Em vez de supremacia branca, exter- mínio completo da negritude. Nesse livro, tão desvalorizado que poucos brasileiros o leram (talvez agora corram a lê-lo) o remédio que Monteiro Lobato encontra para obem- estar dos brancos é, talvez, omais radi- cal que já ocorreu a alguém, mesmo considerando-se o nazismo da década posterior: trata-se simplesmente de er- radicar pela raiz a raça negra, no que o escritor antecipa práticas biogenéticas decantadas por ideólogos e testadas por cientistas nazistas durante a Se- gunda Guerra Mundial. A solução final imaginada por Lobato consiste emesterilizar definitivamente todos os pretos, através de um raio invisível, acoplado a milhares de secadores de cabelos. A execução é facilitada pela vaidade exacerbada dessa parte da população, que a nada mais aspira senão a ser branca. Para isso, já conseguiu clarear a pele e afilar os traços, faltando apenas tornar liso o cabelo crespo. Cientistas do governo produzem, então, o “raio louro” para servir de chamariz à ingênua presa: nenhumnegrodeixa de aceitar a oferta grátis de remover o último obstáculo que ainda o diferencia da amada imagem branca. Vão se formando intermináveis filas de negros junto aos aparelhos desencarapinhadores; do outro lado, saem louros perfeitos e... estéreis. A metáfora da esterilização pune cru- elmente uma raça já tão descaracteri- zada que nem se pode dizer qual seja exatamente ela, no momento de sua imolação: mesmo tendo a ideologia branca, a pele branca, o nariz fino, os cabelos lisos e louros, há para a inclemência descrita por Lobato algo indefinível que persiste negro e temde ser eliminado, semmais possibilidade de revivescência: o fator racial nega- tivo lá dentro do cromossomo. Essa Lei do Ventre Livre às avessas não está flutuando gratuitamente no ar, pois encontra precedentes na lite- ratura deMonteiro Lobato. Numartigo de 1932 que permaneceu inédito até 1959, ou seja, que Lobato preferiu não selecionar para sua Obra Completa (hoje consta do livro Conferências, Artigos e Crônicas), advoga o direito de São Paulo “prover-se de elementos eficientes de defesa” como as raças, “que há raças superiores e inferio- res”. Não vê nenhuma lógica em se aprimorar o “cavalo, o touro, o galo, o carneiro” etc., mas ficar cheio de escrúpulos diante do bicho-homem. Tomando desta vez como exemplo os nativos da República da Botsuana, vai direto ao assunto: “Assim, um bechuana assemelha-se, intelectual e moralmente, muito mais a um gorila do que, naturalmente, a um holandês ou italiano. Judiciosamente, ninguém poderá negar que o negro bechuana é de uma raça inferior à raça latina”. Voltando a O presidente negro , não há no livro elementos de comparação com a momentosa realidade norte- americana, fora o chamariz invo- luntário do título. Nos Estados Unidos trata-se da tentativa de se eleger o pri- meiro mandatário de sua cor, não de o quê os racistas pretendam fazer com ele. O delírio da solução lobatiana corre por conta de sua insopitável imaginação (muito parecida coma de Balzac nos vôos fantásticos). Mas os imprevistos da vida social estão aí, aconselhando tomar cuidado com a sonolência aparente de oráculos coagulados em seus nichos. A sinuo- sidade própria dos acontecimentos globalizados pode arquivar modismos ou, inversamente, convocar à moder- nidade algoque se considerava supera- do ou impossível. Inesperadamente atual, e mais surpreendentemente ainda, no cenário externo do paísmais poderoso do mundo, a crítica de Lo- bato apontará sua cabeça aqui e aqui enquanto durar esta quadra histórica. Quando, dizendo de outro modo, capítulos hoje candentes como neo- liberalismo e globalização, também não passarem de páginas viradas na indiferença da história.
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