Revista da ESPM - MAR-ABR_2008

47 MARÇO / ABRIL DE 2008 – R E V I S T A D A E S P M Bianca Freire-Medeiros Os guias também recomendam que os turistas não respondam a eventuais provocações dos habitantes locais, que não interrompam a passagem dos moradores nas ruazinhas es- treitas e que não dêem esmola – isto porque “não queremos estimular a profissionalização da miséria como instrumento de trabalho”. Não deixa de ser um tanto irônico que aqueles que fazem da pobreza mercadoria sejam os mesmos que denunciam o efeito perverso da prática da esmola e da caridade direta. Há pelo menos quatro pontos de vendas de souvenires onde o turista encontra uma variedade de produtos “by Rocinha”: camisetas, quadros, bolsas, porta-retratos, bordados, es- culturas, CDs. Um produto em par- ticular chamou-me atenção: uma placa com os dizeres “ROCINHA: A PEACEFUL AND BEAUTIFUL PLACE –COPACABANA–RIODE JANEIRO”. A Rocinha é promovida como um lo- cal “pacífico” e “belo”, assim como Copacabana, cartão-postal há muito legitimado no ideário turístico. As cores escolhidas – verde e amarelo – sugerem, ainda, um outro plano de identificação, em que a Rocinha se coloca como parte da nação bra- sileira a despeito das representações hegemônicas que recorrentemente a excluem. De uma presença marginal, a favela é transformada discursiva- mente em parte central da sociedade brasileira. Essa mesma lógica aparece na fala de umdos agentes promotores: “É um passeio para, a partir da favela, se ter um entendimento muito mais profundo da sociedade. A sociedade do Rio envolve favelas, a sociedade do Brasil envolve favelas, então vamos passar sobre esses vários assuntos: política, condições de trabalho, saúde pública, arquitetura, Carnaval, futebol, posse de terreno público, educação... É um passeio muito sociológico”. Sociológicos ou não, mais engajados em projetos sociais ou avessos a tais iniciativas, o fato é que os passeios não oferecem à Rocinha a chance de usufruir, em pé de igualdade, dos benefícios econômicos gerados com o turismo. Os turistas gastam pouco durante a visita e, como não há dis- tribuição dos lucros, os capitais sus- citados pelo turismo são reinvestidos apenas minoritariamente na favela e sempre pela via da caridade. A despeito da resistência de muitos, a prática do turismo na Rocinha tem se mostrado, ao longo de mais de uma década de existência, umnegócio ren- tável para seus promotores no Brasil e vêminspirando iniciativas semelhantes em nível global. Foi depois de fazer o passeio pela Rocinha que Christopher Way resolveu investir na conversão de Dharavi, tida como a maior favela de Mumbai (e quiçá de toda a Ásia), em uma das mais novas atrações turísticas da Índia. Desde janeiro de 2006, o jo- vemempreendedor britânicoeKrishna Poojari, seu sócio comercial indiano, vêm promovendo excursões que cus- tam cerca de US$ 7,00 por pessoa. O turismo na favela faz parte, portanto, de um fenômeno mundial que vem alcançando proporções inesperadas e a partir do qual se podem pensar temasmais amplos, como o das políti- cas de “mercadorização” de lugares, culturas e pessoas em um contexto de globalização e iniqüidade. Capazes de gerar sentimentos de medo e re- pulsa, territórios pobres e segregados são transformados, mundo afora, em atrações altamente valorizadas pelo tu- rista internacional. Como vimos nessa incursão pela Rocinha, uma locali- dade estigmatizada pode converter-se, pela via do turismo, em espaço de sofisticadas atividades comerciais, que incluem não apenas a produção e venda de souvenires, mas tambéma recuperação e construção de marcos urbanos para fins turísticos. O turismo na favela constitui um objeto que apresenta excedentes de sentido que não permitem reduzi-lo à polaridade turistas X locais, sobretudo quando a oposição “favela” X “asfalto” se reproduz com tanta força no ima- ginário da própria cidade. BIANCA FREIRE MEDEIROS Pesquisadora do CPDOC/FGV ES PM Fotos:Alexandre Vidal.

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