Revista da ESPM JAN-FEV_2007

A sociedade dos executivos mortos 78 R E V I S T A D A E S P M – JANEIRO / FEVEREIRO DE 2007 ES PM Entrei sem qualquer dificuldade e me vi, de fato, num salão cheio de vitrines que lembrava um museu. Subi uma escada de madeira e parei diante de uma porta onde se lia: Diretoria. Abri a porta e encontrei-me numa típica sala de reuniões, onde estavam vários homens sentados em volta de uma grande mesa. Pareciam pensativos, acabrunhados e não se surpreenderam com a minha chegada. Ao contrário, parecia até que me esperavam e es- tavam ansiosos pela minha chegada, como se eu tivesse resposta para as suas dúvidas. Dirigi-me ao homem que presidia a reunião, sentado à cabeceira. Era a imagem viva da desolação. Disse-me o seguinte: ‘Nossa firma já foi a maior fábrica de laticínios da Renânia. Além de queijos, iogurtes e cremes, fazíamos também geléias de frutas. O negócio foi iniciado pelo meu bisavô, há mais de 100 anos, e permaneceu sempre nas mãos da família. Alguns de meus colegas aqui presentes são mais ve- lhos do que eu e já participavam da diretoria quando meu pai faleceu e eu assumi a direção geral. Sempre tivemos a obsessão pela qualidade, mas ultimamente era muito difícil controlar os custos e começamos a perder a preferência de clientes que trabalhavam conosco há mais de cin- qüenta anos. Um grande concorrente nos procurou, certa vez, propondo uma fusão. Na verdade, nossa firma seria comprada por eles e perderíamos a nossa autonomia. Pus o assunto em votação e a maioria achou melhor continuarmos sozinhos (vários dos homens ao redor da mesa fizeram sinais afirmativos coma cabeça).Acha- ram que ainda era possível reagir e contratamos uma firma de consultores de Frankfurt que sugeriu mudanças drásticas. Começamos a introduzi- las, mas as coisas pioravam, ao invés de melhorar, até que chegamos a um ponto crítico. Fomos forçados a abrir falência, tentando ressalvar os interes- ses dos credores e dos funcionários. Mais de trezentas pessoas, todosmora- dores na região, ficaramsememprego. Conhecia todos pessoalmente, eram descendentes de famílias que trabalha- vam conosco há gerações. Hoje, nãohámais nada a fazer.Mas eu e meus colegas não teremos sossego enquanto não descobrirmos se a culpa foi nossa. Será que deveríamos ter feito alguma coisa que teria evitado este desastre?’ Se esperavamque eu tivesse respostas, infelizmente ficaram decepcionados. Não quis dizer-lhes o que pensava – que a sua história era igual a muitas outras e que a culpa não era somente deles; era de um século cruel para os executivos que devem tomar decisões. Agi de uma forma que hojeme parece estranha: abençoei-os e saí, sem dizer palavras. Desci a mesma escada por onde subira, mas desta vez parei numa espécie de cafeteria onde os produtos da antiga fábrica eram servidos aos visitantes. Sentei-me a umamesa com toalha xadrez, azul e branco. Uma moça loira e sorridente sentou-se ao meu lado, enquanto um garçom já velho, que andava com dificuldade, trouxe-nos uma bandeja com laticí- nios e geléias. Parti de estômago cheio e muito impressionado com a gentileza com que me trataram. Na volta, parei novamente no mesmo café onde já estivera e contei ao proprietário que havia seguido o seu conselho e visitado a velha fábrica de laticínios. Falei da conversa com os diretores, no segundo andar, e do atendimento que recebera na lancho- nete da firma. Ohomemouviu-me silencioso, numa agitação crescente. Quando terminei, ele disse: ‘Mas o senhor não pode ter encontrado ninguém. Aquela fábrica fechouhámais dequarenta anos. Esses homens – esses diretores – jámorreram há muito tempo. A última a falecer foi G.R., a moça que diz ter sentado à mesa como senhor. Elamorreu emum acidente de carro na Itália’.” EPÍLOGO Asúltimaspalavrasdahistóriaaindaecoa- vamnasala,masnóstodospermanecíamos quietos, claramente surpresos. Ninguém sabiaoquedizer.Nessemomento,minha mulherabriuaportaparachamar-nos,pois estava na hora de sair. Ela permaneceuno vãodaportaporummomento,olhou-nos assustadaeperguntou:“Oqueaconteceu? Atépareceque vocês viramfantasmas”. Ninguémrespondeu,mascreioquenão vimos fantasmas. O que vimos fomos nóspróprios,refletidosnumespelhomis- terioso. E não gostamos das imagens. Jána rua, aoabrir umguarda-chuvaque lheemprestei (equeeleatéhojenãode- volveu), um de meus amigos olhou-me muito sério e disse: “Sabe o que penso? Tenha sido sonho ou não, a história do Manfred traz uma mensagem muito clara: o primeiro dever de um dirigente de empresa, não perante os acionistas, mas sim diante de Deus, é tornar a em- presa próspera e fazê-la crescer. É por isso que ela nos foi confiada”. Pedro Ernesto Fernandes. O nome real do autor foi preservado, a seu pedido.

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx