Revista da ESPM JAN-FEV_2007
Valéria Ravier 89 JANEIRO / FEVEREIRO DE 2007 – R E V I S T A D A E S P M Chamava para informá-lo que houve um problema com a proposta de renovação da sua apólice e que é necessário entrar em contato com o nosso setor de documentação para resolver umas pendências.” Pendências? Eu? Que pendências? Exclamou preocupado. “Essa in- formação lamentavelmente eu não tenho, mas o Sr. pode obter maiores esclarecimentos ligando para o 0800 da nossa companhia.” Anarrativa acima não tem início, meio e fim. Nosso herói, como uma Fênix original que se transforma toda vez que renasce, ressurge a cada uma das cenas do videoclipe que protagoniza, refeito e pronto para outras, como se fosse um personagem de videogame passando por novas fases. O herói desta história não é tão fictício nem tão familiar quanto por momentos o leitor possa sentir que seja. A sua trajetória constitui, no entanto, um curioso mapeamento para o mundo dos negócios. UM HERÓI COM FORTES REFERÊNCIAS DO PASSADO E MAIS DO QUE UM PÉ NO FUTURO Sentado a uma imprecisa distância da montanha, o Sísifo da contemporanei- dade pergunta-se o que é que Maomé teria feito, o que equivale, em termos atuais, a sequestionar seaquelaenorme massa verticalizada de terra representa um obstáculo, um desafio. Acomodado na poltrona, que um dia fora confortável, ele vacila, sente que as molas do estofamento não têm a firmeza de outrora e lembra-se de que o tecido encardido começa a apresentar pequenos furos. Definitivamente está na hora de fazer alguma coisa. Mais uma vez tem aquela sensação de acordar com pique total, disposto a encarar a vida como oportunidade. No fundo, planejar e concretizar ações de marketing é, para o nosso herói, uma questão de pôr em práti- ca as suas próprias características subjetivas. Alinhado com o futuro, ele é fruto da constante mutação pela qual vem passando ao longo dos tempos, como exigência de um meio desafiador, intenso e até sedutor. Sísifo é, sem dúvida, um homo complexus (Morin, 2001:58), fruto do abandono da visão unilateral, que definia o ser humano pela racionalidade, a técnica, as ativi- dades utilitárias e as necessidades obrigatórias. Nosso herói carrega em si a releitura de profundos e estruturais antagonismos: é tão es- perançoso quanto desesperançado, tão racional quanto afetivo, tão trabalhador quanto lúdico, tão empírico quanto imaginário. Su- jeito da economia, o é também do consumismo. Seu estado espiritual complexo e, por isso mesmo abrangente, é tam- bém fruto da irresolução, da dúvida e da confusão. O mesmo contexto tecnológico que poderia libertá-lo provoca-lhe dor e opressão, fazen- do-o oscilar entre a desesperança e a excitação, estimulada por instantes em que tudo parece estar se ini- ciando e a sua capacidade de sentir, reagir, fazer, compreender e resistir se renova. Nesses momentos ele cria novas estratégias diante do real. Condenado pelos deuses a uma vida árdua, busca proteção e segurança em comunidades de consumidores que possuem pedras semelhantes à sua para empurrar montanha acima. Juntos acreditam na possibilidade de construir um futuro menos óbvio. Faz tempo que perdeu a confiança F Uma estranha felici- dade o invadiu ao ouvir o seu celular tocando. Atendeu com entusias- mo e escutou: “É o Sr. Sísifo? Estou ligando da companhia de seguros. Chamava para informá-lo que houve um problema com a proposta de reno- vação da sua apólice e que é necessário entrar em contato com o nosso setor de documentação para resolver umas pendências.”
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