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54 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 55 tíficos para induzir a uma ação rápida e definitiva para diminuir o consumo de combustíveis fósseis – acabou se mostrando ingênua. A política não era seu forte. McKibben não escrevemais para a NewYorker , mas ainda trabalha como jornalista e continua a publicar livros e artigos influentes para a Rolling Stone sobremudanças climáticas e a neces- sidade de controlar ousode combustí- veis fósseis. Ele émais conhecido hoje como o cofundador da 350.org , uma organização engajada em vários pro- jetos ambientais, que reivindica ação mundial urgente sobre as mudanças climáticas. Entre os projetos da 350. org, estão impedir a construção do oleoduto Keystone XL, que ligaria o Canadá comoGolfo doMéxico, e con- gelar novos investimentos em com- bustíveis fósseis. “Havia uma grande cobertura e a maior parte dela era inteligente”, diz McKibben, por telefone, de sua casa emVermont, no nordeste dos Estados Unidos. “Os jornalistas falavamcomos cientistas e simplesmente relatavam a conversa. Não tinha ocorrido a nin- guém que isso devia ter sido tratado comouma questãopolítica, enão cien- tífica”, afirma, ao lembrar como era feita a cobertura no fimdos anos 1980. Mas ele acrescenta: “Não demorou muito para a indústria de combustí- veis fósseis semovimentar e transfor- mar o assunto em uma questão polí- tica, algopartidárioque eles pudessem explorar. Eles traçaramuma estratégia que hoje vemos como umesforço para derrotar a ciência. E o principal alvo deles eramosmeios de comunicação”. A estratégia foi bem-sucedida. Nos anos seguintes, essa indústria não ape- nasderrotouosconservacionistas,como começou a atuar no discurso da mídia que falava em equilíbrio e equidade. Desde o início da cobertura sobre clima, é cada vez maior a certeza dos cientistas de que há provas irrefutá- veis do papel terrível que o homem exerce no aumento da temperatura global.Mesmo assim, é como se os jor- nalistas estivessemparados no tempo, apresentando dados científicos como se eles ainda estivessemsujeitos a dis- cussão. Comose fossemmaisumponto a ser debatido, avaliado. Conforme a convicção da comunidade científica cresce–97%dos cientistas concordam que oplaneta está esquentando e que o ser humano é a causa –, os repórteres, editores eprodutoresdehojedeveriam penetrar o campo da política, em vez demartelar a falsa ideia de que há um debate em torno do assunto. Muitos especialistas dizem que os jornalistas centram a apuração em fontes cientificamente equivocadas, conhecidas como think tanks patro- cinados e ideologicamente coopta- dos pela indústria de combustíveis fósseis, que se opõem à regulação da emissão de gases causadores do efeito estufa. Os jornalistas também pode- riam fazer mais e tratar de soluções para as mudanças climáticas, e, com isso, diminuir a ansiedade da popu- lação americana quanto às conse- quências econômicas do enfrenta- mento da questão. Luta de gigantes Em 1992, apenas quatro anos depois da alarmante declaração de Hansen, o repórter investigativo 1 Ross Gelbs- pan se aposentou do jornalismo e pas- sou a escrever ficção política. Gelbs- pan tinha feito revelações chocantes da “guerra suja” entre a União Sovié- tica e a administraçãoReagannaAmé- ricaCentral enquanto esteve no Phila- delphia Bulletin , no Boston Globe e no Washington Post . Quando Paul Eps- tein, um médico da Escola de Medi- cina deHarvard, apresentou a ele uma pesquisa ligando alterações no clima à proliferaçãode doenças infecciosas, os instintos de repórter deGelbspan aflo- raram outra vez. A dupla escreveu umeditorial para o caderno Outlook, de opiniões, do WashingtonPost , intitulado “Devemos temer uma epidemia global?”, desta- cando a pesquisa de Epstein e aler- tando para a proliferação de várias doenças devido à elevação de tem- peraturas nomundo. Gelbspan estava prestes a começar a escrever um livro sobre a investigação, mas logo que o editorial foi publicado, ele passou a receber cartas de leitores do Post argumentando que ele estava exage- rando. O aumento de temperatura era temporário, elas diziam, parte de um ciclo natural. As cartas o obrigaram a fazer uma pausa. Algumas recomendavam que ele consultasse o trabalho de con- testadores das alterações do clima, como Richard Lintzen, Fred Singer, Pat Michaels e Bob Balling. Os argu- mentos eram convincentes, e Gelbs- pan sentiu certo alívio ao perceber que a humanidade não estava à beira de uma catástrofe climática. Ele resolveu, então, abandonar o livro emandamento.Mas jáhaviamar- cado entrevistas com vários clima- tologistas de renome e se sentiu no dever de honrar esses compromis- sos. Um deles explicou ao jornalista que as teorias daqueles céticos não eram totalmente sólidas. Tratava-se de dados escolhidos especificamente para levantar dúvidas, quando todos os demais cientistas estavam seguros do processo de alteração do clima. No entanto, o especialista disse estar intrigado com uma questão: quem estava financiando os estudio- sos que questionavam as mudanças climáticas? Eles não recebiam ver- bas das fontes usuais, como a Funda- ção Nacional de Ciências (National Science Foundation, agência federal americana fundadanos anos 1950para financiar pesquisas básicas em facul- dades e universidades). Muitos dos contestadores eram cientistas reco- nhecidos, embora não fossem espe- cialistas em áreas relacionadas à cli- matologia. De todomodo, a origemde seu financiamento era uma incógnita. Fossem quem fossem, os céticos estavam espalhando sua mensagem. Os jornalistas os procuravam para responder a opiniões de cientistas como Hansen e Roger Revelle, que em 1965 escrevera um relatório para o governo Johnson. Lintzen, Singer e outros céticos apareciam a toda hora nos meios de comunicação, dizendo que a tendência de aquecimento era parte de umciclo natural e que a ciên- cia ainda não tinha chegado a umcon- senso sobre o assunto. Gelbspan voltou ao projeto de seu livro. Ele soube que os legisladores de Minnesota realizariam uma audi- ência sobre os impactos ambientais da queima de carvão. Além da chuva ácida, do smog , e outros tipos de polui- ção do ar, umdeputado estadual pediu que o aquecimento global também fosse incluído na pauta de impactos a serem estudados. “Conversei longamente coma pro- curadora que estava coordenando as audiências”, explica Gelbspan. “Ela me disse que a indústria do carvão tinha convidado quatrodaqueles cien- tistas céticos para falar. E aquela era uma audiência de pouca expressão – na Comissão de Serviços Públicos ou coisa assim– e eu perguntei ‘Bem, por que você não faz com que comentem a origem do financiamento deles?’” De acordo como repórter investiga- tivo aposentado, no dia da audiência, ele era o único jornalista no recinto. “Eis que, sob juramento, eles for- necem a lista da origemde seu finan- ciamento, e tudo vem da indústria de combustíveis fósseis”, Gelbspan rela- tou. “Então pensei: ‘Merda, é isso que está acontecendo’.” Depois disso, ocorreu o que o clima- tologista Michael E. Mann, da Penn State University, chama de guerra do clima, e a principal estratégia era questionar o trabalho de repórteres quemostravamas alterações do clima como fato consumado. Consenso científico Era o plano perfeito, porque utilizava umamáxima do jornalismo: ser justo e equilibrado ao apresentar os contornos de um debate. Mas, para fazer isso, os repórteres frequentemente recorriam a porta-vozes ligados à indústria para falar sobre a ciência – e não sobre solu- ções políticas em potencial, esfera da qual a indústria de fato deveria tomar parte. Porém, como as soluções polí- ticas poderiam restringir o lucro, o melhor era questionar o conhecimento em que elas se apoiavam. Aquilo queMcKibben considerava uma cobertura precisa das mudanças climáticas no fimdos anos 1980 – jor- nalistas cobrindo ciência, e não polí- tica – foi para Gelbspan uma falha estrutural grave na atuação dos jor- nalistas na década de 1990. O equívoco começava já na esco- lha de quem faria a cobertura. “Eram repórteres de ciência que cobriam o assunto, e eles não eram do tipo que rastreia o dinheiro”, diz Gelbspan. Os incrédulos damudança do clima daquele tempo estavam roubando o espaço na mídia que antes era da luta contra a regulamentação dos produ- tos de tabaco – reivindicando “equilí- brio” dos jornais e redes de TV na sua cobertura científica. Gelbspan foi um dos primeiros a perceber o ardil des- sas demandas. Mas jornalistas menos espertos foramenganados com facili- dade, ou cederamàs pressões cotidia- nas do fechamento. E assimconsegui- ram separar cientistas e repórteres. Em Merchants of Doubt , os histo- riadores Erik M. Conway e Naomi Oreskes traçama saga do engano ide- ológico financiado pela indústria, ilus- trando com temas que vão do tabaco à chuva ácida e ao buraco na camada de ozônio, até chegar aos debates atuais sobre as mudanças climáticas. “O caso do tabaco foi a primeira grande campanha sistematizada de negação”, garante Oreskes. “A lição óbvia para os jornalistas é saber que isso existe, e que se apoia na virtude do jornalismo de equilíbrio e objeti- vidade.” Mas acrescenta: “Isso leva o jornalista a um beco sem saída”. O beco sem saída, em outras pala- vras, é produzido por uma ignorân- cia artificial, dirigida contra o conhe- cimento acumulado. Existem pon- tos questionáveis em algumas áreas – por exemplo, quanto à ligação entre mudanças no clima e certos fenôme- nos naturais extremos. Mas dizer que O erro foi buscar porta-vozes ligados à indústria para falar sobre a ciência – e não sobre soluções políticas para resolver questões relacionadas ao aquecimento global 1 Na versão original deste artigo, Ross Gelbspan é chamado de vencedor do Pulitzer. Gelbspan foi editor da equipe do Boston Globe que venceu o prêmio em 1984, mas seu nome não está na lista dos vencedores.
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