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56 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 57 existe umdebate científico sobre se as temperaturasnomundoestão subindo, ou se os humanos estão provocando isso, é ignorar totalmente os fatos. Acada relatório aprovado do Painel Intergovernamental sobreMudanças Climáticas daOrganizaçãodasNações Unidas (IPCC, na sigla em inglês), os cientistas afirmam com segurança crescente a ligação entre as emissões de gases do efeito estufa geradas por humanos e o aquecimento global. O primeiro relatório do painel, publi- cado em 1990, afirmava: “As emis- sões resultantes da atividade humana estão aumentando substancialmente a concentração de gases causadores do efeito estufa na atmosfera”, e esses gases “intensificam o efeito estufa, resultando, em geral, em um aque- cimento maior da superfície terres- tre”. O segundo relatório, de 1995, alertava para a “perigosa interferên- cia antrópica no sistema climático”. Em setembro de 2013, o IPCC divul- gou seu quinto relatório, que diz: “É extremamente provável que a influ- ência humana seja a causa prepon- derante do aquecimento observado desde 1950”. Em 2009 foi divulgado um dado que seria repetido muitas vezes – 97% dos especialistas do clima ou de atmosfera acreditavamhaver rela- ção entre as emissões de gases do efeito estufa geradas por humanos e o aquecimento global. É um nível de consenso ligeiramente inferior ao que existe acerca da existência da gravidade e semelhante ao de que há provas científicas que ligam o uso do tabaco ao câncer. Com esse nível de certeza, declara Oreskes, o objetivo dos jornalistas deveria ter sido precisão em vez de equilíbrio. Em outras palavras, eles não teriamse preocupado com“equi- líbrio” em um debate sobre a Lei da Gravidade, dando o mesmo espaço para alguém defendendo que ela não existe ao reservado a quem acredita nela. Por que deveriam fazer isso em relação às alterações no clima? Ainda de acordo comOreskes, os repórteres deveriam estar questionando aos 3% de ditos céticos os motivos desse dis- senso, especialmente se considerado o histórico da indústria – e as campa- nhas de desinformação conduzidas pelos think tanks . A historiadora acrescenta que “é necessário ter informações para jul- gar a objetividade desses pesquisado- res, e para identificar possíveis confli- tos de interesses que possam influen- ciar as descobertas de seus estudos”. Falha na avaliação Faz 26 anos desde queHansen sentou- se diante da comissão do Senado com seu baú de dados científicos. Mesmo assim, os jornalistas ainda vacilam ao cobrir asmudanças climáticas. Quando a indústria de comunicação tinha dinheiro a rodo, as redações transbor- davam de repórteres e editores espe- cializados e experientes. Mas, desde o início dos anos 2000, cortes de pes- soal, a eliminaçãodas editorias demeio ambiente e cobertura cada vez mais focada tornaram o jornalismo sobre o clima ainda mais difícil. A indústria da comunicação foi corrompida por sua incapacidade de avaliar o interesse político desses céticos, e também por forças econômicas quedefendiamseus próprios interesses. “Você não pode olhar para a cober- tura sobre mudança climática fora do contexto do declínio geral da imprensa”, diz Bud Ward, um vete- rano de quatro décadas de jornalismo ambiental e organizador do Fórumde Mudanças Climáticas eMídia de Yale. Qualquer que seja a sua origem, esse falso equilíbrio permanece. No USA Today , a política interna determina que todo editorial sobre um assunto “controverso” seja acompanhado de outro editorial defendendo a posição contrária. Emoutubro, o jornal trans- formou o último relatório do IPCCem editorial. Fiel à sua política de equilí- brio, deu espaço para Joseph L. Bast, o chefe do InstitutoHeartland, finan- ciado pela indústria de combustíveis fósseis e fundações que se opõem à regulação pelo governo. Bast escre- veu artigos de opinião para veículos de peso, incluindo The Washington Post e Bloomberg News . Talvez pior do que distorcer a ciên- cia é o fenômeno, especialmente nos principais talk shows de domingo na TV, de ignorar completamente a ques- tão da mudança climática. Emmaio de 2013, Heidi Cullen, cli- matologista chefe da Climate Central, uma organização sem fins lucrativos formada por cientistas e jornalistas para analisar e divulgar os impac- tos das mudanças climáticas, apare- ceu no programa Face the Nation , da rede CBS, que vai ao ar nas manhãs de domingo e traz entrevistas rela- cionadas a política. Foi a primeira vez em cinco anos que um cientista foi a um talk show de domingo para falar sobre alterações no clima, segundo o centro de pesquisa Media Matters for America. A conferência do clima de Cope- nhague, o furacão Sandy, os recor- des de temperatura pelo mundo, a contínua seca nos Estados Unidos, os incêndios florestais na Austrália e as inundações na Europa foramgran- des destaques no início do século 21, entre outros acontecimentos ligados ao clima. Mesmo assim, de acordo com o Media Matters, esses progra- mas influentes falharamquando dei- xaramde convidar especialistas para explicar o que se sabe – e o que não se sabe – sobre o aquecimento glo- bal, suas conexões com fenômenos extremos e a influência da atividade humana sobre eles. Emvez disso, os talk shows domini- cais promoveram debates entre polí- ticos, representantes de indústrias e colunistas que muitas vezes dis- torciam dados científicos para ques- tionar determinada posição política, sem que ninguém estivesse ali para desafiá-los. Ainda que a indústria do combus- tível fóssil tenha ganhado o primeiro round em sua luta para influenciar a imprensa, os ambientalistas estão se mexendo para vencer o segundo. Entre suas armas há umnúmero cres- cente de sites especializados, como Climate Central, ClimateWire, The Daily Climate, e o site vencedor do Pulitzer InsideClimate News, assim como Mother Jones , uma revista espe- cializada em jornalismo investigativo sobre política, meio ambiente, direi- tos humanos e cultura. Novos opera- dores no mercado de mídia ameri- cano, como o britânico The Guardian e Al Jazeera America, o canal para os Estados Unidos da rede árabe sediada em Doha, no Catar, expandiram os horizontes da cobertura das mudan- ças climáticas. De fato, no primeiro dia de trans- missão da Al Jazeera America, em agosto de 2013, 30 minutos foram dedicados às alterações do clima. Segundo a Media Matters, isso cor- responde a cerca demetade do tempo de programação que o tema teve em 2012. Quando o tempo de TV para esse assunto é tão curto, não é preciso muito esforço para ganhar a batalha de influência. Debate político A guerra do clima também está sendo travada entre aqueles que assinam os cheques para financiá-la. Fundações conservadoras doaram cerca de US$ 900 milhões entre 2003 e 2012 para organizações semfins lucrativos e think tanks que se dedicam, pelo menos em parte, a questionar asmudanças climá- ticas, segundo Robert J. Brulle, cien- tista ambiental e professor de Socio- logia na Drexel University. Embora a maior partedesse financiamentoesteja voltado para campanhas eleitorais e afins, influenciar a imprensa perma- nece umdos principais objetivos des- ses grupos. É difícil medir que lado está ga- nhando, uma vez que não há esta- tísticas para cada grupo dedicado a influenciar a consciência ambiental. Odinheironão garante, todavia, que amensagemde certogrupo sejapersu- asiva. O indicador mais claro de que a imprensa não fez o seu papel é o baixo nível de compreensão das mudanças climáticas que se revela empesquisas de opinião – que só tempiorado desde o início da guerra do clima. Em sua mais recente pesquisa sobre o meio ambiente, o Instituto Gallup revelou que 42% dos entrevistados acredi- tam que a imprensa exagerou a ame- aça do aquecimento global. Os meios de comunicação são apenas uma das influências sobre a opinião pública. Mesmo assim, a pesquisa demonstra o fracasso da imprensa em explicar o assunto claramente. “A imprensa reflete a covardia da maioria da sociedade quando não encara a realidade nem relata nossa verdadeira situação”, afirma Gelbs- pan. “Éuma tremenda traição da con- fiança do público.” McKibben é categórico: “Não há outro jeito de dizer isso, nos últimos 25 anos o jornalismo fracassou em grande escala ao tentar transmitir a ideia de que a coisamais perigosa que poderia acontecer para omundo está acontecendo”. Gelbspan acredita que, para uma coberturamelhor, os jornalistas deve- riamexaminarmaisdepertoos impac- tos das mudanças do clima, como os prejuízos econômicos causados por fenômenos climáticos mais intensos e frequentes ou o modo como essas alterações podem levar a conflitos civis e políticos. Muitas das principais organizações de imprensa realizaram investigações aprofundadas sobre a influência das redes políticas conservadoras, finan- ciadas pela indústria dos combustí- veis fósseis, como a família Koch e a ExxonMobil. Nesse sentido, o jorna- lismo político, e não o científico, tem sido mais eficaz ao expor o elo entre esses grupos e a ciência. Mesmoassim, aindahámuito traba- lho pela frente. Até aqui, deveríamos ter progredido na cobertura intensiva do debate político de como responder às mudanças climáticas, e não cobrir uma discussão sobre se elas existem. Nesse caso, o equilíbrio tem sido ini- migo da verdade. ■ robert s. eshelman é jornalista freelance e produtor associado da série Years of Living Dangerously , documentário em nove capítulos feito para o canal de TV americano Showtime. Talvez pior do que distorcer as evidências é o fenômeno, muito comum nos talk shows na TV americana, de ignorar dados comprovados sobre a alteração do clima Texto originalmente publicado na edição de maio/junho de 2014 da CJR.

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