RJESPM 10

60 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 cia absolutamente precisa sejamuma maneira de (tentar) resguardar o jor- nalista. O problema é quando surgem dados novos e eventualmente confli- tantes, que são interpretados – e alar- deados – como “erros”, não como apri- moramento da ciência. Ciência do apocalipse Foi comalarde, aliás, que amídia noti- ciou as conclusões do AR-4. De um movimento interpretativo semprece- dentes na cobertura de ciência sobre meio ambiente, anunciou um futuro “sombrio” e “catastrófico” para aTerra. Segundo as “previsões”, muito mais dos jornalistas do que dos cientistas, estava decretado o apocalipse (página dupla da revista Veja falou em “Apo- calipse Já”, para citar um exemplo). O que o AR-4 do IPCC denominou de processo “inequívoco” (a responsabili- dade do homempelo aquecimento do planeta), a mídia leu e deu a ler como “irreversível”, deslizando para senti- dos como “sombrio”, “catastrófico” e outros correlatos. Oteor alarmista, emuitas vezes sen- sacionalista, predominouna cobertura pós-2007 até a divulgação do AR-5, em setembro do ano passado. Havia grande expectativa de que este fosse aindamais contundente emsuas con- clusões. Não foi, e tivemos uma reper- cussão insossa e pouco analítica. Por- que, para determinada concepção de notícia, o AR-5 “não trouxe novida- des”. E eis aqui o ponto que eu gos- taria de ver debatido no campo jor- nalístico: o fato de não termos tirado proveito desse aspecto, naminha opi- nião, positivo, das conclusões doAR-5. O que deixamos de explorar ao limi- tar a importância de dado aconteci- mento àquilo que é “novidade”? Vamos por partes. A ciência do clima avançou muito de 2007 para cá. Para ter uma ideia, no AR-5 foram utilizados 47modelos climáticos, cada um deles muito mais sofisticado do que os 17 usados no AR-4. Verificou- se que os valores calculados para o aumento de temperatura são muito similares entre um relatório e outro, o que indica solidez nas projeções já feitas em2007, coma vantagemde um grau maior de sofisticação das análi- ses (talvez isso explique a redução do espaço aos céticos). Obviamente, isso não quer dizer que as conclusões do IPCC são definitivas. Até porque os fenômenos naturais também podem sofrer mudanças ao longo do tempo. Masporque, afinal, euvejoa “ausên- ciadonovo” comopositiva?Porquenos instiga, como jornalistas, a uma refle- xão sobre a concepção de (e da) notí- cia e o seu impacto social. A similari- dade dos valores em ambos os rela- tórios aponta para uma situação que carece de mobilização e medidas glo- bais, e é sim um indicativo de robus- tez do atual estágio do conhecimento sobre o clima da Terra. Nesse caso, no news , good news . Seja como for, inter- pretardados científicos é ter (e, nocaso damídia, promover) a compreensãode que a ciência, comoprocesso emcons- trução, não tem o dever nem o poder de ser irreparável e imutável. Quando vencermos essa etapa, a cobertura jor- nalística dará um grande salto. ■ ana paula freire é jornalista e analista em C&T no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN-CNEN/MCTI). É doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em 3 de fevereiro de 2007, a Folha repercute relatório internacional e dá manchete sobre catástrofes causadas pela mudança do clima FOLHAPRESS

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