RJESPM 10
64 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 65 os ensaios argelinos cobrem, e o jornalismo nas crônicas dá ummarco utilíssimo para essa vida engajada. Para cap- tar oqueCamus quis dizer em Estocolmo, é preciso enten- der sua evolução intelectual e moral – indicada pela leitura de tragédias gregas e pelos textos que publicou no jornal da Resistência francesa Com- bat durante e após a Segunda Guerra Mundial. Um episódio anterior a esse, que nenhum dos dois livros cita – embora Zaretsky o tenha abordado em outra obra biográfica, Albert Camus: Elements of a Life –, já prenunciava a postura de Camus na questão argelina. No final de 1946, depois de ter se retratado pelo apoio ao expurgo de colaboradores nazistas durante os julgamen- tos do pós-guerra na França, quando chegou a defender a pena de morte, Camus cruzou com um velho amigo. O companheiro acabara de se filiar ao Partido Comunista – nummomento emque isso significava justificar os gulags de Stalin. Em seus cadernos, Camus narrou o encontro: – Então, você será um assassino. – Já fui – respondeu o amigo. – Eu também. Mas não quero mais ser. – E você foi meu mentor. Era verdade. – Ouça, Tar. Eis o verdadeiro problema: aconteça o que acon- tecer, sempre o defenderei contra o pelotão de fuzilamento. Mas você será obrigado a aprovar minha execução. Reflita sobre isso. Se o argumento soa elementar, digno de umcurso intro- dutório de ética, é porque é: quando não estava divagando ou tratando superficialmente da obra de pensadores mais rigorosos, Camus exibia o dom (e a maldição) da simpli- cidade. Logo, embora os dois lançamentos cheguem em hora oportuna – 2013 foi o centenário do nascimento de Camus e Chroniques Algériennes , seu último livro a ser traduzido para o inglês, ganhou nova relevância à luz da Primavera Árabe –, ambos também são importantes por martelar uma tese simples, muito cara a Camus: embora possa ser moldada pela ideologia, a vida é vivida exclusi- vamente por homens e mulheres de carne e osso. Foi a defesa dessa vida imperfeita, em toda sua desor- dem, queCamus tentou transmitir ao amigoTar. Seu traba- lho editorial, no qual ideias privadas eram transformadas em posições públicas, registra as decisões e reconsidera- ções que o levarama defender amoderação emdetrimento da conveniência política. Com o fim da guerra mundial e o início da fria – com duas superpotências igualmente prontas para matar e converter –, Camus aventou a tese radical de que não tinha o direito de sacrificar a vida de outrempelo bemmaior ou por um futuromelhor, e ques- tionava quem dissesse o contrário. É fácil declarar Deus e a história como aliados – e a vida em geral vale pouco quando um dos dois está do seu lado. Camus não puxara o gatilho durante o expurgo do pós-guerra na França, mas defendera o carregamento dos rifles. Isso foi suficiente para o autor acabar convencido de que, comuma boa pon- taria, palavras são tão letais quanto balas – e, também, a única defesa contra elas. Camus decidiu que sua húbris jamais deveria se repetir: se houvesse muitos erros desse calibre, não sobraria ninguém para decidir quem estava certo e quem estava errado. Antes de se aventurar no jornalismo, Camus se lançou aos palcos. Ao concluir a tese na Universidade de Argel, em 1936, foi tocar uma companhia de teatro. Isso coinci- diu comos dois anos emque pertenceu ao Partido Comu- nista (a bilheteria do teatro era doada a trabalhadores desempregados em Argel). A teoria de que a programa- ção devia ser ajustada ao público ( know-your-audience ) levou à montagem da tragédia Prometeu Acorrentado (editora Martin Claret, 2004), de Ésquilo, em 1937. O deus que desobedece a Zeus e divide com meros mor- tais o fogo divino era cultuado pelo circuito de esquerda desde 1841, pelo menos, quando em sua tese de douto- rado Karl Marx chamou Prometeu de “o mais nobre dos santos e mártires do calendário filosófico”. Camus ecoou o sentimento: “Uma revolução é sempre contra os deu- ses, a começar pela de Prometeu”. Logo depois, Camus partiria para seu próximo papel, na jovem redação do Alger-Républican . Ali, poderia redigir e proclamar as próprias falas. O novo periódico emArgel seguia a linha do movimento da Frente Popular liderado pelo socialista Léon Blum, um dos autores do abortado projeto Blum-Violette, que teria concedido direitos civis e ao voto a mais de 20 mil muçulmanos na Argélia. Em um dos primeiros textos que assinou, Camus falou da visita a um navio-prisão abarrotado de árabes: “Não há espetáculo mais abjeto do que ver o homem reduzido a uma condição subumana”. Foi comomesmo espírito, que infundiria sua melhor produção, que no primeiro semes- tre de 1939 Camus começou a escrever uma série sobre a fome no norte da colônia – a primeira reportagem inclu- ída em Chroniques Algériennes foi intitulada “Misère de la Kabylie” (“Miséria de Cabília”). Miséria em território francês Camus não tardou a entender que o problema da fome era econômico, não ecológico, e que a solução não era cari- dade – a doação de algumas toneladas de alimentos –, mas amudança da política colonial francesa. Ohomemprecisa trabalhar para ter comida, disseCamus, mas não temcomo trabalhar se não comer. Em resposta à reação da direita à reportagem, ele escreveu: “Hoje emdia, a impressão é que não é umbomfrancês quemfala damiséria de umterritório francês. Devo dizer que é difícil, atualmente, saber como ser umbomfrancês”. Camus, que era franco-argelino, exor- tou os compatriotas a fazer jus aos ideais de uma república que abolira o direito divino da realeza em favor do ideal de liberté , égalité, fraternité . Para ele, a escolha era clara. Meses depois da publicação da última reportagem do especial sobre a fome na Cabília, a Alemanha e a União Soviética assinavamo PactoMolotov-Ribbentrop – expul- sando das primeiras páginas dos jornais as notícias sobre o sofrimento da colônia africana. No dia 7 de setembro, comas tropas nazistas na Polônia, Camus voltava a enxer- gar o preto e o branco de um conflito. “Ninguém pode dizer: ‘Não sei de nada’”, registrou em seus cadernos. “Ou você luta, ou colabora (...). É a um só tempo impossível e imoral julgar um fato de fora. Só preserva o direito de denunciar esse infortúnio absurdo quempermanece den- tro dele.” Embora já mergulhado no que viria a ser uma trilogia “multigênero” sobre o absurdo – a peça Calígula (com tradução disponível apenas emedição portuguesa), o ensaio filosófico OMito de Sísifo (Record, 2004 – esgo- tada) e o romance O Estrangeiro –, Camus não podia pre- ver o grau de absurdo que a próxima guerra iria atingir. Em1942, para se recuperar de uma crise da velha tuber- culose, Camus trocou a Argélia por um vilarejo nos alpes franceses. No ano seguinte, entrou para a equipe do jor- nal clandestino Combat . Após a libertação de Paris, em agosto de 1944, o cargo de editor do periódico, que assu- mira havia pouco, ganhou maior complexidade. Sem um inimigo comumpara unir facções distintas, alianças entre católicos e comunistas, socialistas e conservadores – sur- gidas no bojo da Resistência – logo se esgarçaram; a velha questão do poder, de quem o exercia e como, voltou a se impor. Outro problema nem um pouco desprezível era o destino de colaboradores: membros do governo Vichy, industriais oportunistas, jornalistas complacentes (cerca de 32mil cidadãos franceses acabarampresos por colabo- ração). Dias após a libertação, Camus se recusou, no Com- bat , a distinguir assassinos de cúmplices. Pouco depois, escreveria: “É inútil contestar o terrível fato de que sere- mos obrigados a destruir uma parte viva desse país para salvar sua alma”. Àquela altura, Camus já vinha travando, em editoriais, um debate com François Mauriac, o escri- tor católico que mais tarde também receberia o Nobel de Literatura. Desde o início, Mauriac se mostrara preo- cupado com o risco de excessos pela Resistência no pós- guerra. Agora, observava que “a inquisição tambémquei- mava corpos para salvar almas”. Camus dava sua análise de acontecimentos no país e no exterior – o papel da imprensa numa França livre, a reeleição de Roosevelt, a Espanha do general Franco –, mas a polêmica comMauriac o obrigava a ser mais espe- cífico ao defender o papel da moral na política. Camus gostava de implicar seus leitores; agora, implicava a si mesmo. Já que é só com o diálogo que a posição de cada lado é verdadeiramente definida, Camus teve de seguir sua lógica até o cadafalso. Quando saiu a primeira sen- tença demorte para umcolaborador, seu comentário veio na primeira pessoa do plural, sua favorita: “E nós decidi- mos adotar a Justiça humana, com suas terríveis imper- feições, com o apego sôfrego à honestidade para tentar corrigi-las”. A divina talvez tivesse bastado para quem, como Mauriac, acreditava em Deus, mas para a maioria dos homens a eternidade estava longe demais; a Justiça devia ser rápida e terrível. Que a sentença de morte em Com a pena certeira, Camus defendeu a tese de uma existência imperfeita, conduzida em meio à desordem criada por homens e mulheres de carne e osso
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