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66 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 67 questão tivesse ido para um jornalista e não, digamos, para o marechal Pétain, chefe do governo de Vichy, ou para um integrante da milícia paramilitar que deportara judeus era mostra flagrante dessas imperfeições. Em meio a isso tudo, Camus não deixava de pensar na Argélia. Seis dias depois da rendição da Alemanha, publi- cou no Combat o primeiro de seis artigos inspirados numa visita de três semanas à terra natal. Era ummomento difí- cil para mobilizar o leitor na França commais um episó- dio de fome em outro país, mas Camus insistiu, estam- pando os artigos na primeira página. “Estamos fadados a viver juntos”, escreveu. MandemJustiça, grãos, dinheiro. Camus lembrou os franceses de que centenas de milha- res de árabes argelinos tinham lutado sob a bandeira tri- color, e que, como a França fora incapaz de assimilar ou emancipar aqueles árabes lá atrás – com a modesta pro- posta Blum-Violette –, não tardaria para que a colônia desse as costas à França. A realidade da fome não muda, concluiu Camus, mas suas repercussões, sim. Defesa do humanismo O desencanto acabou invadindo boa parte da produção de Camus. “Omundo é o que é – o que não é muito” era o iní- cio de seu editorial de 8 de agosto de 1945, publicado dois dias depois de os americanos lançarem a bomba atômica sobreHiroshima. Outra das poucas vozes a denunciar o fato na imprensa francesa foi François Mauriac – e já não era o único temanoqual aopiniãodosdois coincidia. Camus agora julgava o expurgo do pós-guerra umdesastre: “Não parece fácil encontrar o caminho reto da Justiça emmeio a mani- festações de ódio vindas de um lado e o clamor especial de consciências culpadas proveniente do outro”. O preto e o branco tinham virado cinza. A lucidez da posição deMau- riac estava no apelo à caridade e à moderação – que deve- riamser buscadas não como virtudes cristãs, mas por terem o poder de refrear o eterno anseio do homememser o dono da razão. Operigo representadopor esse desejopreocupava cada vez mais Camus – assim como a defesa irrestrita da própria retidão, que poderia minar, e até destruir, a autori- dade que conferira razão ao indivíduo em primeiro lugar. Assim, no final de 1946, pouco antes da marcante con- versa com Tar, Camus registrava os temas discutidos em outro encontro – no caso, uma noitada de conversas sobre moral e política na casa de AndréMalraux comJean-Paul Sartre, Arthur Koestler eManès Sperber. Koestler falou da necessidade de “um código de ética mínimo na política”; Malrauxquestionou se odestinodoproletariado seria sem- pre a preocupação suprema; Camus indagou se o desper- tar da esperança não era o reconhecimento de que, vies- sem da escola de Nietzsche ou de Marx, tinham errado ao negar valores morais; já Sartre se recusou a denunciar unicamente a União Soviética, comparando a deportação dos russos ao linchamento de negros nos Estados Unidos (ao que parece, a intervenção do pobre Sperber se limi- tou a um“Sim, etc. etc.”). E, durante todo o tempo”, escre- veu Camus, resumindo o encontro, “a impossibilidade de determinar quanto de medo ou verdade há naquilo que cada um diz”. Os tempos tinham mudado, e o que fora uma frente unida agora era uma esquerda fraturada. Cada umdos antigos aliados assumiria uma postura própria em relação ao comunismo soviético. Por dez anos,Malraux foi ministro da cultura de Charles de Gaulle; Sartre criou um estilo próprio demarxismomilitante e anticolonialismo; já Camus retomou o humanismo, a única defesa que enxer- gava contra o totalitarismo da guerra fria. Emsuaúltima grande contribuição ao Combat , uma série intitulada Ni Victimes, Ni Bourreaux (Nem vítimas, nem algozes), Camus aborda a questão do medo, da verdade, da divisão: “Vivemos em terror porque a persuasão não é mais possível, porque o homem foi entregue por completo à história e já não pode se voltar àquela parte de si mesmo tão verdadeira quanto a parte histórica, e que reencontra diante da beleza domundo e da face humana”. Eis Camus emseu elemento: não está errado, é apenas anacrônico. No rosto de Sartre em Paris ou no de um argelino em Esto- colmo, Camus esperava descobrir algo em comum; a seu ver, semprehaveria algo, e fosse oque fosse, triunfaria sobre o nada. Tinha visto homens que discordavam se unirem na luta contra o nazismo, e agora o comunismo na União Soviética e o capitalismo nos Estados Unidos descamba- vam, ambos, para uma análise de custo-benefício na qual essa verdade, essa beleza e esse diálogo eram considera- dos dispensáveis. Mas o que poderia substituir esses sis- temas? Essa é sempre a questão. Camus dava sugestões – como o internacionalismo –, mas sempre foi mais eficaz no diagnóstico, e voltou ao deus grego para dar a dimensão do problema: “O homem, hoje, crê que é necessário antes de tudo libertar o corpo, ainda que a mente deva morrer temporariamente. Mas amente podemorrer temporaria- mente? Na verdade, se Prometeu reaparecesse, o homem moderno faria o que fizeram os deuses lá atrás: o cravaria à rocha, emnome domesmo humanismo que ele foi o pri- meiro a simbolizar”. Manda hoje quem mandou sempre. Tanto Zaretsky, no prefácio de A Life Worth Living , como Goldhammer, na nota do tradutor de Chroniques Algérienne s, chamamCamus de moralista. Ambos expli- cam a decisão, pois sabem que o leitor americano vai naturalmente concluir que alguémassimrotulado é pre- tensioso. Embora um verda- deiro moraliste busque lem- brar o homem do que ele é e do que pode ser, o fato é que amaioria das pessoas não temtempopara isso. Emais: é difícil expor comleveza a dis- paridade entre o que somos e o que poderíamos ser – escre- ver para a posteridade pede mão pesada –, daí os roman- ces de Camus às vezes darem a sensação de que operam em dois planos. Em seus melhores escritos, de ficção ou não, Camus inseriu o homem em uma situação qualquer, absurda ou não, e tentou mostrar como poderia chegar à salvação, sem Deus nem fé na natureza progressiva da história. A crise na Argélia colocou Camus em tal situ- ação. Sua trajetória jornalística começou com a ques- tão do que deveria ser feito lá, carreira que chegaria ao fim sob impacto do mesmo problema. Sua moderação foi posta à prova. Futuro da tragédia Em Ni Victimes, Ni Bourreaux , Camus concluía que “a única saída honrosa seria apostar obstinadamente que, no final, palavras seriam mais fortes do que balas”. Foi uma esco- lha ousada. À medida que a Frente de Libertação Nacio- nal e o governo francês adotavam cada vez mais os méto- dos prontamente a seu dispor – a primeira deslanchando uma série de atentados, o segundo respondendo com força desmedida e, às vezes, indiscriminada, incluindo tortura –, Camus começou a escrever editoriais na revista L’Express em 1955, condenando as táticas de ambos. Mais uma vez, estava nomeio do fogo cruzado. Foi a Argel tentar conven- cer vozes mais moderadas a aceitar uma trégua e lembrar essas pessoas de que deviam “se recusar tanto a empregar como a se submeter ao terror”. Na rua, uma multidão de argelinos atirava pedras contra a janela. Não fica claro se a arte imitou a vida ou a vida imitou a arte, ou mesmo se há alguma distinção útil, mas o que Camus declarou em “Sur l’Avenir de la Tragédie” (Sobre o futuro da tragédia), uma palestra proferida emAtenas naquelemesmo ano, expres- sou sua conflituosa posição sobre a Argélia: Prometeu é, a um só tempo, justo e injusto, e Zeus, que im- piedosamente o oprime, também tem lá sua razão. O melo- drama poderia, portanto, ser assim resumido: “Só um lado é justo e justificável”, enquanto a fórmula trágica perfeita seria: “Tudo pode ser justificado, ninguém é justo”. É por isso que o coro na tragédia clássica costuma pedir prudên- cia. É que o coro sabe que, até certo limite, todo mundo tem razão – e que a pessoa que, por cegueira ou paixão, trans- põe esse limite está rumando para a catástrofe se insistir no desejo de impor uma razão da qual se julga o único detentor. Em seu papel final, Camus se juntou ao coro. Daí ter rejeitado, em Estocolmo, qualquer Justiça que permi- tisse a morte de civis e de ter enviado uma carta ao jor- nal Le Monde afirmando que o argelino que o interpelara “sabia do que estava falando e seu rosto não refletia ódio, mas tristeza e desespero. Compartilho dessa tristeza. É o rosto do meu país”. Foi a esse país unificado que Camus sentia ter sido sempre fiel – e mesmo durante o silêncio público agiu nos bastidores, protestando, emcartas, contra as cerca de 150 sentenças demorte lançadas pelo governo francês contra combatentes argelinos. Camus publicou Chroniques Algériennes em 1958, seis meses depois de receber o Nobel. Àquela altura, nenhum dos principais envolvidos se importava muito em ouvir seu chamado à prudência. Camus provavelmente sabia que isso geral- mente ocorre nas tragédias clássicas. Palavras não foram páreo para as balas. ■ elias altman é editor associado da revista Lapham’s Quarterly . “O mundo é o que é – o que não é muito”, escreveu o autor em editorial de 8 de agosto de 1945, publicado dois dias depois do ataque nuclear a Hiroshima Texto originalmente publicado na edição de janeiro/fevereiro de 2014 da CJR.

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