RJESPM 10
70 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 71 público fica no escuro – impotente diante de problemas complexos que envolvem instituições cruciais para toda uma nação. Até hoje, poucos pre- cisam ser lembrados do estrago cau- sado pela crise: a perda da casa pró- pria por 10 milhões de americanos (e muitos mais ficaram sob risco de perdê-la), 23 milhões de desempre- gados ou subempregados, a perda de uma geração de conquistas por comu- nidades inteiras, o socorro escanda- loso dos culpados, a polarização polí- tica interna e a instabilidade emoutros países. E por aí vai. Acriseque se avizinhava eramesmo tão imperceptível? Era complexa a ponto de escapar à compreensão da grande imprensa e, por tabela, do público? Era mesmo tão secreta? O fato é que a resposta a tudo isso é “não”. O problema – incentivos dis- torcidos que desvirtuaram a indús- tria financeira – era patente, mas não para executivos de bancos, correto- res, agências de classificação de risco, analistas, quants e o resto da fauna do mercado. Era claríssimo, no entanto, para quemvia o drama de fora: regula- dores, advogados de gente lesada, gru- pos comunitários, mutuários engam- belados e, sobretudo, ex-funcioná- rios de instituições financeiras que denunciavama esparrela. Muitos jor- nalistas foram, aliás, falar com essa turma, entenderam o grau de metás- tase do problema e escreveram sobre o assunto. Infelizmente, nenhumdeles trabalhava na editoria de economia de grandes meios. Na esteira do colapso do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, houve um grande bate-boca sobre as causas da crise – celeuma que, hoje, está mais ou menos resol- vida. Embora obviamente a coisa seja complicada, Wall Street e institui- ções de crédito hipotecário figuram em peso no banco dos réus. Emmeio a tudo, houve uma contenda menor sobre o papel da imprensa especia- lizada. Afinal, o setor que ela cobria – e sobre o qual julga ter especial domínio – é o mesmo que de repente implodiu, para o espanto de todos. Para repórteres de economia, a crise foi mais do que uma surpresa – che- gou-se a pensar até que havia algo de sinistro ali. Afinal, uma geração de profissionais nos Estados Unidos tinha crescido comaquele panteão de bancos e, constantemente, estampado seu nome na capa demeios como For- tune , Forbes , The Wall Street Jour- nal , The New York Times . Tão ínti- mas eram essas instituições que a imprensa americana fora antropo- morfizando sua descrição ao longo dos anos: o Morgan Stanley era o banco da elite anglo-saxã protes- tante; a Merrill Lynch, a firma irlan- desa-católica batalhadora (paramui- tos meio bronca); o Goldman Sachs, o banco da elite judaica; o Lehman Brothers, o judeu batalhador; o Bear Stearns, a safadinha – e por aí vai. Amados ou odiados, ali estavam: relu- zentes torres do poder abonadas por empresas de auditoria, agências de rating , reguladores. Até que, um dia, deixaram de ser. Um belo cochilo Os críticos sugeriram, como seria de esperar, que a imprensa especializada dormira ao volante. Numa entrevista de março de 2009 que tornou-se viral na internet, o comediante Jon Stewart questionou umcomentarista do canal CNBC, JimCramer, sobre o problema. Stewart disse, na prática, que o jorna- lismo econômico se ufanava de cobrir omercado financeirodeponta a ponta, 24horas por dia,mas – sabe-se lá como – deixara passar a notíciamais impor- tante do setor na atualidade. “É uma coisa que você sabe que está acon- tecendo, mas um canal de economia na TV [ como o seu ] vai ao ar e finge que não está acontecendo”, afirmou Stewart. Muita gente entendia exata- mente o que ele queria dizer. Grandes nomes do jornalismo eco- nômico defenderam sua atuação no pré-crise, o que talvez também fosse de esperar. Em palestras e entrevis- tas, esses profissionais sustentaram que a imprensa tinha, sim, alertado para o problema. E deram exemplos de reportagens que discutiam o des- calabro do sistema de crédito antes de a crise irromper. Alguns chega- rama dizer que o erro fora do próprio público – que cruzara os braços diante da informação que a imprensa vinha fornecendo o tempo todo. “Quemesti- vesse atento teria visto a bandeira vermelha que jornalistas de econo- mia vinham agitando havia anos”, escreveu Chris Roush num artigo – “Unheeded Warnings” (algo como “Alertas ignorados”) – que expôs lon- gamente a visão dos profissionais da área. Diana Henriques, respeitada repórter investigativa e de economia do New York Times , defendeu a pro- fissão numa palestra emnovembro de 2008: “Se tivessemprestado atenção, o governo, o setor financeiro e o con- sumidor americano teriamouvido de nós uma série de alertas sobre a crise, lá atrás, quando ainda havia tempo de evacuar e buscar proteção contra a tormenta”. Houve muitas declara- ções do gênero. Até que a imprensa seguiu adiante. Vale a pena observar que, discur- sos e declarações à parte, o jornalismo econômico não publicou nenhum material contundente sobre seu pecu- liar papel no sistema financeiro no pré-crise. Por outro lado, investigou e cobrou satisfações de praticamente todos os demais atores na crise: os bancos emWall Street, instituições de créditohipotecário, oFederal Reserve, a Securities and Exchange Commis- sion, a dupla Fannie Mae e Freddy Mac, o Office of Thrift Supervision, o Office of the Comptroller of the Cur- rency, consultores de remuneração e por aí vai. Esse trabalho de criminalís- tica é totalmente válido. Mas e quanto ao cão de guarda? No começo de 2009, a Columbia Journalism Review , na qual sou edi- tor, lançou um projeto com um obje- tivo bemsimples: determinar se o jor- nalismo econômico nos Estados Uni- dos realmente tinha – como dizia – alertado devidamente o público para o perigo que se avizinhava enquanto ainda era tempo de agir. A ideia era fazer uma leitura neutra do material que a grande imprensa econômica produzira antes da crise. Criamos uma lista óbvia de nove grandes publica- ções atuantes no jornalismo econô- mico em língua inglesa ( The Wall Street Journal , Fortune , Forbes , Busi- nessWeek , Financial Times , Bloom- berg , TheNewYork Times , Los Angeles Times e The Washington Post ) e usa- mos bancos de notícias para buscar todo conteúdo que de modo plausí- vel pudesse ser considerado umalerta sobre o cerne do problema: práticas irresponsáveis de instituições de cré- dito imobiliário e seus aliados emWall Street. Emseguida, pedimos às publi- cações que nos indicassem o melhor conteúdo sobre o tema que haviam produzido no período – e, que fique registrado, quase todas cooperaram. O resultado foi a reportagem “Power Problem”, publicada na pri- meira metade de 2009. A conclusão foi simples: a imprensa especializada fizera tudo, menos confrontar as ins- tituições responsáveis pelo colapso do sistema financeiro. Essa imprensa publicou as denúnciasmais severas de instituições de crédito e Wall Street entre 2000 e 2003 – e não forammui- tas, vale dizer. Em seguida, por moti- vos que tentarei explicar, passou o período crítico de 2004 a 2006 publi- candomatérias de utilidade, mas nem de longe suficientemente orientadas para consumidores e investidores. Não se veem reportagens investiga- tivas confrontando diretamente ins- tituições poderosas sobre práticas de negócios básicas enquanto essas ins- tituições ainda tinham poder. O cão de guarda não ladrou. Em meio à bolha imobiliária Quem lê uma miscelânea de textos jornalísticos sobre instituições de cré- dito imobiliário e bancos americanos durante a bolha sai do exercício com noções radicalmentedivergentes sobre a solidez do sistema financeiro ameri- cano. Tudodependedo texto. Qualquer leitor que estivesse “atento” ao jorna- lismo econômico convencional teria justa razãopara crer que a situação era, basicamente, de normalidade. Havia, sim, uma bolha imobiliária. Uma lei- tura imparcial do noticiário da época deixa isso claro – embora quase todo alerta fosse mitigado pela celebração igualmente eloquente do “boom”. E a imprensa disse, sim, que havia uma pencadeprodutosabomináveisnomer- cado de crédito imobiliário. Essas são questões importantes para consumido- O furacão que se formava seria tão complexo e imperceptível a ponto de escapar aos grandes meios e, por tabela, ao público? A resposta é “não”
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