RJESPM 10

72 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 73 res e investidores. Mas os jornalistas não foram muito além disso. Quando o olhar se voltava a instituições finan- ceiras, amensagemera totalmente dis- tinta: tudo azul. E o problema não era só a rasgação de seda e a bajulação. É que até textos que criticavam aberta- mente algum banco ou instituição de crédito formulavam a coisa em ter- mos da concorrência entre firmas: os resultados seriamabalados?Haviauma bolha, sem sombra de dúvida, e o jor- nalismo econômico fazia parte dela. O problema é que o sistema que cobria estava fazendo água por todo lado. A corrupção institucionalizada, alimentada por incentivos perversos na remuneração, só crescia. A“subpri- mização” domercado financeiro ame- ricano – a metástase de uma indús- tria notória, até então marginal, para o cerne do sistema financeiro – estava em estágio avançado. Se a coisa toda tivesse sido um grande segredo, até haveria desculpa. Agora, se fosse de fato, como explicar que a Forbes – justo ela – tenha publicado em 2002 uma crítica duríssima da firmaHouse- hold Finance, então uma gigante do subprime, sob o título “HomeWreck- er” – e não tenha voltado ao assunto com igual veemência antes que fosse tarde demais? E o que dizer do Wall Street Journal , que na mesma época estampouuma reportagemcomoabri- lhante “Best Interests: HowBig Len- ders Sell a Pricier Refinancing to Poor Homeowners...” no espaço nobre que é sua primeira página, e nadamais do gênero depois disso, quando a situa- ção piorou, e muito? Enquanto isso, ainda em2003, umrepórter chamado Michael Hudson escrevia o seguinte: Uma investigação durante sete me- ses pelo Southern Exposure expôs um padrão de práticas predatórias em unidades de subprime do Citi. O Southern Exposure entrevistou mais de 150 indivíduos –mutuários, advo- gados, ativistas, funcionários, ex-fun- cionários – e analisoumilhares de pá- ginas de contratos de empréstimos, autos de processos, depoimentos e relatórios da empresa. Esses indiví- duos e documentos fornecem fortes indícios de que as operações de sub- prime do Citi estão gerando bilhões de dólares emganhos ilícitos aomirar o público mais vulnerável de todos. Outra realidade Quem é Michael Hudson? E que dia- bos é o SouthernExposure ?Aliás, como explicar que um repórter de cidades de um semanário alternativo em Pit- tsburgh, semnenhuma experiência na cobertura econômica, tenha sido capaz de escrever o seguinte (grifo nosso)? Por sua própria natureza, o mercado de títulos lastreados em hipotecas in- centiva instituições de crédito a con- ceder omaior volume de empréstimos aos juros mais altos possíveis. Embo- ra possa parecer uma receita para a concessão de empréstimos de forma frenética e irresponsável, normas fe- derais, diretrizes estritas da Fannie Mae e da FreddieMac, concorrência intensa e direta entre bancos e relati- va sofisticação dos tomadores de em- préstimos embancos impedemque a coisa fuja ao controle, de acordo com o relatório do Departamento do Te- souro e do Departamento da Habi- tação e Desenvolvimento Urbano. Já no mercado de crédito subprime es- ses freios não funcionam tão bem, pois aregulamentaçãoémaisfrouxa,omar- keting mais ousado e a clientela me- nos informada . Adata? 2004. Enquanto umamoda- lidade de jornalismo dizia uma coisa, outra pintava uma realidade total- mente distinta. Como explicar essas representações radicalmente opos- tas? E por que o jornalismo econô- mico convencional foi perfeitamente capaz de realizar as duas modalida- des de cobertura quando os proble- mas eram pequenos, mas incapaz de produzir o segundo modelo – mais contundente e valioso – mais tarde, quando necessário? Walter Lippmann, autor da epí- grafe deste artigo, tem tanta razão hojequantoo tinha em1920.Nãobasta que repórteres e editores enfrentem toda sorte de percalço, como muitos já fazem. É hora de abrir o jogo com o público. A verdade sobre os basti- dores da notícia precisa ser contada. Precisa ser contada porque, no perí- odo que antecedeu a crise financeira mundial, a imprensa especializada deixou o público na mão. Precisa ser contada porque a crise do subprime e suas sequelas coinci- dem comuma crise nomeio jornalís- tico. OGoogle e uma nova vanguarda de empresas de internet atingiram em cheio o modelo de negócios tra- dicional da imprensa, abocanhando um belo naco da receita publicitária que havia muito sustentava o jorna- lismo americano. Redações de gran- des meios foramdizimadas; milhares de jornalistas de publicações impres- sas foram parar na rua ou na área de relações públicas. Seus ex-cole- gas hoje atuam num ambiente novo, angustiante, assolado por dificulda- des financeiras e pautado por requisi- tos de produtividade ainda mais exi- gentes. Paralelamente, umnovo ecos- sistema digital de jornalismo surgia – com novas publicações, modelos, formatos, práticas, idiomas, ferra- mentas, instituições. Prestação de contas Háoutradiscussão inflamada emcurso sobre o futuro do jornalismo: quemvai fazê-lo, que cara terá, e quem – ou o quê – é o tal “público” ao qual o jorna- lismo deveria estar se dirigindo. Como em todo momento de crise, consulto- res, marqueteiros e oportunistas de toda ordem – nunca distantes do jor- nalismo – vierama público proclamar que sabem o que o futuro reserva. Só que ninguém realmente sabe. A única certeza no jornalismo hoje em dia é que está tudo em discussão, tudo no ar:modelos denegócios, formatos, fun- ções, práticas, valores. Organizações jornalísticas vão sobreviver? Redes de amadores serão de ajuda? A narra- tiva jornalística é algo ultrapassado? A análise estatística – o big data – é a próxima revolução? Anova era digital não deve ser descartada só por não ter feito jus a sua promessa. Estamos nummomento, portanto, em que é justo dizer que a grande imprensa não cumpriu uma função básica e que, como sempre, o futuro é incerto. Já o presente anda meio de pernas para o ar. Não há esperança? Na verdade, há, sim. Há umamoda- lidade de jornalismo comprovada- mente eficaz na defesa do interesse público, umverdadeiro cão de guarda – e isso desde os dias da grande Ida Tarbell [ ícone do jornalismo inves- tigativo americano ] , no começo do século 20. Não é nemalternativa, nem do establishment . Não é necessaria- mente profissional ou amadora. Não é inerentemente analógica ou digital. É uma prática. Aliás, essa prática nunca teve um nome bom. Às vezes é chamada de jornalismo que presta contas, ou res- ponsável ( accountability reporting ). Às vezes, de “jornalismo investigativo”. Às vezes, de “jornalismo de serviço público” ou de “interesse público”. Às vezes, de algumoutro nome. Aqui, vamos de “jornalismo responsável”. Esse accountability é um termo téc- nico do jornalismo – jargão de repór- teres e editores, comodiriaLippmann. É, contudo, um termo que conviria ao público entender melhor. A impressão é a de que todomundo seria a favor de algo como o jornalismo que presta contas. Mas não: amodali- dade só virouuma prática profissiona- lizada na grande imprensa na década de 1960 e, desde então, teve de lutar para sobreviver emorganizações jor- nalísticas. Jornalismo de confronto e denúncia que é, naturalmente des- perta a hostilidade de ricos e pode- rosos. Em 1906, quando chamou a prática de “muckraking” [ algo como “remexer a lama, o lixo, a sujeira” ], o presidente americano Theo- dore Roosevelt não fazia um elogio. Arriscada, estressante, cara e difícil, a modalidade enfrenta resistência per- manente em organizações jornalís- ticas e causa ojeriza em burocratas, no pessoal do financeiro, na ala ven- dida. Empresários do meio, como o finado fundador do USA Today , Al Neuharth, e o magnata Rupert Mur- doch, zombam do jornalismo de ser- viço público – ou de qualquer coisa semelhante – visto como uma forma de elitismo, uma veleidade de gente presunçosa atrás de prêmios, de jorna- listas que escrevem para “outros jor- nalistas”, como disse um biógrafo de Murdoch. A oposição a reportagens “longas” e “pretensiosas” impostas ao público por profissionais “elitistas” é invariavelmente usada para justificar a falta de verba para o jornalismo de interesse público, como veremos. Só que desprezar a reportagem longa e ambiciosa é como defender a torta de Empresas de internet abocanharam, naquele período, boa parte da receita publicitária que sustentava os veículos tradicionais

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx