RJESPM 10
74 JULHO | AGOSTO | SETEMBRO 2014 revista de jornalismo ESPM | cJR 75 maçã mas se opor à farinha, à man- teiga, ao açúcar e à forma de assar. No fim das contas, não há torta. Na era digital, a impaciência com o jornalismo que presta contas ficou ainda mais pronunciada. A matemá- tica e a arquitetura tecnológica da notícia na internet militam contra ele. O resultado é que paladinos do jornalismo digital também tendem a ignorá-lo – ou rejeitá-lo por completo. “O conceito da reportagem de fôlego é todo centrado no jornalista, não no público”, disse no Twitter um guru do jornalismo digital, o americano Jeff Jarvis. Só que a prestação de con- tas é uma função vital do jornalismo americano. É o que o distingue, o que o torna poderoso – quando indepen- dente. É ele que define a pauta, que desperta a confiança do público, que cria valor. Éele que explica problemas complexos a um público de massa e põe contra a parede os poderosos. É a razão de ser do jornalismo. Omomento é bompara discutirmos de que jornalismo o público precisa. O que realmente funciona? Quemsão os verdadeiros pais e mães do jorna- lismo? Há algum fio de autoridade no passado coletivo que nos ajude a singrar seu futuro? O que cria valor – tanto no sentido material quanto em termos do que é bome valioso no jor- nalismo americano? A grande reportagem Embora o jornalismo que presta con- tas assuma várias formas – uma série de revelações num jornal ou site, um livro, umbloconuma revista televisiva– amais comumé, desdemuito, a repor- tagemextensa emjornais ou revistas, o foco deste livro. Seria a grande repor- tagem. O formato estreou comos arti- gos semiliteráriosdos “muckrakers”no começo do século 20 (o texto de Ida Tarbell sobre o monopólio da Stan- dard Oil na revista McClure é um bri- lhante exemplo). Como veremos, a grande reportagem já deu mostras de seu poder subversivo inúmeras vezes, além de ter exposto e elucidado pro- blemas complexos para umpúblico de massa sobreumleque quase infinitode assuntos: corrupção em cidades ame- ricanas, o trabalho escravo na atuali- dade, o custo humano dos chamados “leveraged buyouts”, a brutalidade e a corrupção da polícia, o socorro de ins- tituições financeiras na surdina pelo governo americano, crimes acoberta- dos de bambambãs damídia e da polí- tica, e por aí vai – entra ano, sai ano. O maior dos editores “muckrakers”, Samuel S. McClure, vivia repetindo à equipe, quase comoummantra, que “A matériaéoque importa!”Etinha razão. O “jornalismo de fontes” – ou seja, obter informações privilegiadas de indivíduos e instituições que dete- nham algum poder – é o velho rival do jornalismo que presta contas. No cenário americano, são as duas prin- cipais tendências – e pode-se dizer que a tensão entre ambas define o meio. A escola da fonte e a de pres- tação de contas representam noções radicalmente distintas daquilo que o jornalismo é e a quem deveria servir. As duas práticas produzem repre- sentações totalmente distintas da realidade – diferença que se provou crucial na antevéspera da crise. No jornalismo de fontes, a meta é obter informações exclusivas sobre atos ou intenções de atores importantes antes que sejam amplamente difun- didas. Sua marca é o furo, a informa- ção exclusiva. No jornalismo econô- mico, a típica reportagemde fontes é o furo sobre alguma fusão ou aquisi- ção. Já o jornalismo que presta contas busca obter informações não de –mas sobre – atores de poder. O resultado típico é a longa reportagem. JORNALISMO DE FONTES JORNALISMO QUE PRESTA CONTAS Rápido Lento Curto Longo Fontes em elites Fontes dissidentes Visão ortodoxa Visão heterodoxa De cima para baixo De baixo para cima Quantidade Qualidade Investidor Público Nicho Massa Cordial com empresas Hostil a empresas Pirâmide invertida Narrativa Funcionalista Moralista Sempre tenho emmentedois exem- plos, umdecadaescola:GretchenMor- genson, grande repórter investigativa e editora do NewYork Times , e Andrew Ross Sorkin, diretor do siteDealbook, uma próspera divisão do mesmo jor- nal cujo foco é a cobertura de fusões e aquisições nomeio empresarial.Mor- genson foi aprimeira a revelar –diante da feroz oposição do Goldman Sachs, entre outros – quemseriamos benefi- ciados pelo resgatedaAmerican Inter- national Group: a própria Goldman Sachs, entre outros bancos de Wall Street. Jáomonumental livrodeSorkin sobre a crise, Too Big to Fail [ que ori- ginou em 2011 um filme para televisão exibido pelo canal HBO, cujo título em português é GrandeDemais paraQue- brar], festejapersonagensdessamesma Wall Street pelas (infrutíferas) tentati- vas de evitar uma catástrofe que suas próprias instituições tinham provo- cado. Que os dois grandes represen- tantes desses extremos do jornalismo trabalhem para o mesmo meio vem sublinhar até que ponto o jornalismo precisa equilibrar as duas tendências. Uma maneira de entender a dife- rença é pensar que o jornalismo de fontes leva ao leitor o que atores pode- rosos dizem, enquanto o que presta contas informa ao público o que esses atores fazem. O jornalismo de fontes tende a falar com elites; o que presta contas, comdissidentes. O jornalismo de fontes discorre sobre temas espe- cíficos para um público de nicho. Já o que presta contas trata de temas gerais para um público de massa. As diferenças são tão gritantes que dá para resumi-las numa tabela, como a que está na página ao lado. O jornalismo de fontes tende a transmitir visões ortodoxas; o que presta contas, heterodoxas. Na cober- tura econômica, o jornalismode fontes fecha o foco em interesses de inves- tidores; o que presta contas, no inte- resse público. As duasmodalidades são, portanto, o Jacó e o Esaú, o Gogue e oMagogue do jornalismo, eternamente brigando por recursos, por status, por influên- cia. Não é, contudo, uma briga equi- librada. O jornalismo de fontes é o ganha-pão da atividade. Émais rápido de produzir e raramente antagonista, o que o torna mais compatível com requisitos de produtividade damídia. Já o que presta contas é sempre mar- ginal, uma operação cara, responsá- vel por reportagens de apuração lenta, que despertam inimizades. Mas, das duas modalidades, somente uma fala para o, e pelo, público em geral. Arma em defesa do público Chego a esse debate depois de 30 anos de atuação como jornalista, dez deles como repórter investigativo, outros dez como repórter de economia. Já fiz tanto o jornalismo de fontes como o que presta contas e entendo o que cada umexige. Oproblema para o jor- nalismo e para o público, no entanto, é que o jornalismo que presta contas é, a um só tempo, o mais vital e o mais vulnerável. A diferença entre os dois está em denunciar os desmandos no Citigroup em2003 ou encher a bola do banco em 2006. Explicando de forma simples, o jornalismo que presta con- tas captou o drama que passou batido pelo jornalismo de fontes. Este livro traça a evolução do cão de guarda desde as raízes no “muckraking” e sua luta para conquis- tar um espaço na grande imprensa. Minha esperança, de certo modo, é narrar a história da grande reporta- gem. Há três razões para essa abor- dagemhistórica: mostrar que o jorna- lismo que presta contas é, sim, uma arma poderosa de defesa do público; mostrar por que sua ausência foi tão nociva durante a crise hipotecária nos Estados Unidos; e garantir seu futuro seja lá qual for o jornalismo que des- ponte da ruptura digital – pois sem a prestação de contas o jornalismo em si não tem propósito, não tem foco, não tem razão de ser. A primeirameta é particularmente importante para refutar o que con- sidero críticas simplistas – tanto à direita quanto à esquerda do espectro político, bem como de gurus do jor- nalismo digital – que tendema tachar a “grande imprensa” de irremedia- velmente tendenciosa (como acusa a direita), de inutilmente tímida (como diz a esquerda) ou, simplesmente, de incapaz (como dizem partidários de novas mídias). As três críticas podem ter algum mérito. Uma boa parte da velha imprensa realmente devia pen- durar as chuteiras. Mas o jornalismo que presta contas devia sempre ser visto como a prática central que define e distingue o jornalismo americano. ■ dean starkman é editor da seção de economia da CJR , “The Audit”, e autor do livro The Watchdog That Didn’t Bark: The Financial Crisis and the Disappearance of Investigative Journalism (Columbia University Press, 2014). Texto originalmente publicado na edição de janeiro/fevereiro de 2014 da CJR.
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