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revista de jornalismo ESPM | cJR 65 em novembro de 1997, o jornal ame- ricano Los Angeles Times estampouna primeirapáginaumgrande trabalhode reportagem–umtextodemaisde6.500 palavras sobreavidadefilhosdedepen- dentes de drogas. A autora era Sonia Nazario, então uma jovemrepórter da editoria de cidades. Não era a estreia de Nazario num gênero de cobertura que a colocava embrutal contato com o sofrimento humano, para além das fronteiras codificadas que separam fonte e personagem. Três anos antes, durante o trabalho de uma apuração de um especial igualmente imersivo sobre a fome infantil, a repórter teste- munhara cenas como a de uma famí- lia dividindo três cachorros-quentes, e nada mais, para o jantar. Nazario viu crianças implorando para ir brincar na casa de amiguinhos só pela promessa de uma refeição. Viu umprofessor que distribuíamaçãs ser praticamente atropelado por alunos famintos – muito mais do que pode- ria alimentar. A repórter nunca ofereceu ajuda. Quando um fotógrafo que a acom- panhava deu uma sacola de manti- mentos a uma família, teve a sensação de que o colega violara uma barreira ética. “Creio que algo que aprendi desde cedo como repórter é que não se deve intervir ou alterar uma situa- ção que estamos cobrindo”, dizNaza- rio. Como sempre fazia no início de um trabalho de apuração, a repórter pacientemente explicava a cada per- sonagemque estava ali para observar, para contar uma história que desper- tasse a atenção do público para a ques- tão e que, com sorte, levasse outros indivíduos a tomar providências. É uma noção tradicional de objetivi- dade e, há mais de um século, o ideal que define o jornalismo americano. Mas a reportagemdeNazario sobre filhos de dependentes de drogas – “Orphans of Addiction” – trazia deta- lhes horripilantes. A repórter narrou casos de crianças apanhando e dor- mindo em colchões sujos de urina e sêmen; e de uma garotinha de 3 anos, chamada Tamika Triggs, que cor- tou o pé num caco de vidro e teve de cuidar sozinha do ferimento. A cena mais estarrecedora, registrada por um fotógrafo sem que Nazario esti- vesse presente, era a de um homem escovando os dentes da menina com a escova da mãe, uma portadora de HIV que deixara a cena pouco antes com as gengivas sangrando. Naturalmente, muitos leitores fica- ram revoltados. Mas, em vez de vol- tar a ira contra órgãos públicos cuja função é proteger a criança, a cruci- ficada foi Nazario. Centenas de leito- res escreveram ao jornal criticando a jornalista por não ter impedido o abuso; alguns mandaram escovas de dentes. “Ganhar um prêmio era tão importante para você que valia a pena arriscar a vida de uma criança de 3 anos de idade?”, perguntou um leitor. Um investigador da agência de pro- teção à criança deu queixa na polí- cia contra Nazario. A revolta causada pela reportagem foi tal que a Ameri- can Journalism Review publicou um artigo fustigando a decisão de Naza- rio de não intervir. Apenas um observador O irônico é que a reportagem teve um impacto concreto: 24 horas depois da publicação, o volume de denúncias de abuso infantil nocondadodeLosAnge- les subira 20% – no cômputo geral, cresceu 45%. O condado abriu uma sindicância sobre a Agência de Prote- ção à Criança e reestruturou os canais de denúncias. O volume de recursos federais e estaduais destinados a pro- gramas para mães dependentes cres- ceu. A reportagem ajudou, também, a melhorar a situação das famílias nela retratadas: TamikaTriggs foi para uma casade acolhimento temporário; amãe foi internada numa clínica de recupe- ração.Nazariodespertoua empatiados leitores e levou os órgãos responsá- veis a agir – omelhor resultado que se poderia esperar desse gênerode jorna- lismo, sobmuitos aspectos. “Colocar o leitor nomeio do sofrimento e fazê-lo acompanhar o desdobrar da situação emgeral é amaneiramais impactante A foto de um homem escovando os dentes de uma menina com a escova da mãe, portadora de HIV, causou indignação em 1997 Arquivo CJR/Clarence Williams/Los Angeles Times
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