RJESPM 11
66 outubro | novembro | dezembro 2014 denarrar umcasodesses”, dizNazario. Não é difícil entender, no entanto, a revolta dos leitores com a atitude da repórter naquele relato incomoda- mente íntimo da pobreza. Primeiro, porque é da natureza humana querer ajudar quem está sofrendo. Um tra- balho jornalístico desses, contudo, também encerra questões comple- xas e controversas de raça, classe e poder. Um repórter pode achar que seus motivos são claros – chamar a atenção para um problema social na esperança de que seja resolvido. Mas, fora do meio jornalístico, a interpre- tação demotivos e resultados relacio- nados ao fato de um jornalista (geral- mente branco) de classemédia se pro- por a contar a história de uma famí- lia pobre (geralmente negra ou latina) pode ser bastante distinta. Oque para um jornalista significa dizer a verdade pode ser, para um leitor, exploração ou condenação. A tradição da reportagemde imer- são remonta ao nascimento do jorna- lismo americanomoderno, no século 19. O papel do jornalista nesse gênero – sobretudo quando o personagemda narrativa é pobre – sempre foi motivo de certo debate. Nellie Bly surpreen- deu o público leitor ao se fazer passar por louca para expor a realidade de ummanicômio: a jornalista se infiltrou num sanatório público para escrever “Ten Days in a Mad-House”, céle- bre série de reportagens no NewYork World que mais tarde viraria livro. Embora a façanha tenha transformado o jornalismo na época, a ética dessa imersão profunda certamente seria vista com outros olhos nos dias atu- ais. How the Other Half Lives , livro de 1890 do jornalista e reformista social Jacob Riis sobre a pobreza no Lower East Side, emNova York, volta emeia é chamadode revolucionáriopela inti- midade de Riis com seus “persona- gens”. Nas décadas que se seguiram à publicação, o poder público buscou melhorar as condições de vida nos cortiços e fábricas do bairro. Quando Riis lançou a obra, a obje- tividademal despontara como princí- pio norteador do jornalismo. Mas Riis – que vinha da tradicional escola do jornalismo diário (foi repórter policial do NewYork Evening Sun quando che- gou aos Estados Unidos, na década de 1870) – não via seus personagens com a lente empática que seria de esperar de um jornalista que defendia a causa dos desfavorecidos. Riis atribuía ao pobre parte da culpa por sua situação, tratava sem sensibilidade racial imi- grantes chineses e italianos e, na intro- dução do livro, afirmou que os corti- ços da cidade “despachamuma escó- ria de quarentamil farrapos humanos a asilos e casas de correção da ilha a cada ano (...) para abusar de nossas instituições de caridade”. Para o bem ou para o mal Umséculodepois, a “objetividade” que faltou ao juízo de Riis sobre o pobre virara, para o bem ou para o mal, a norma no meio jornalístico. Foi justa- mente o distanciamento pregado pelo jornalismoobjetivoque serviude com- bustível às críticas à reportagem de Nazario sobre filhos de dependentes de drogas. No intervalo transcorrido desde a publicação da série, o cabresto da objetividade estritamente definida sobre o jornalismo afrouxou devido ao efeito democratizante da internet – tendo sido totalmente aposentada por muita gentena vanguardadigital como um ideal impossível que tornava o jor- nalismo apático e cheio de falsas equi- valências. Quando o público conquis- tou o poder de rebater o que o jorna- lista diz, reza a tese, a ideia de que um repórterpossadaraversãodefinitivade qualquer assunto – que dirá de algo tão amploedifícil de tratar comoapobreza – ganhou ares de relíquia do século 20. Mas odebate sobre o que jornalistas que cobrem as camadas mais pobres da população devem a seus persona- gens permanece sem solução, e a res- posta hoje é tão importante quanto nunca. A desigualdade de renda, que vem crescendo sem parar desde a década de 1970, está hoje no pata- mar mais elevado nos Estados Uni- dos desde 1928. Se uma das funções do jornalismo émanter o público a par da realidade da democracia, é crucial contar a história de quemestá ficando para trás. Foi o que indicou a safra de Pulitzers deste ano, com cinco prê- mios concedidos a reportagens sobre pobreza e desigualdade – incluindo uma investigaçãodo TampaBayTimes sobre as precárias condições demora- dias destinadas à população sem-teto da cidade de Tampa, na Flórida, e a extensa série de Eli Saslow sobre o auxílio alimentação ( food stamps ) no Washington Post . Uma cobertura que abra ao leitor uma janela para o dia a dia da pobreza é, diriammuitos, amelhor ferramenta do jornalismo para ilustrar o que, sem isso, poderia ser umamera estatística. “Adesigualdade não passa de umgrá- fico no FiveThirtyEight.com se não incluir também a voz da pessoa que está penando, com um emprego no McDonalds, para alimentar, vestir e dar um teto a uma criança pequena”, argumenta Bruce Shapiro, que dirige
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