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68 outubro | novembro | dezembro 2014 escutei”, diz ele. “Houve quem dis- sesse ‘De jeito nenhum. Você vai ter de desistir dessa ideia e passar para outra’. Já um documentarista disse: ‘Alex, caia na real, se não estiver dis- postoa fazer issoémelhorbuscaroutro tipo de trabalho’”. No final, Kotlowitz abandonou o projeto. Manter essa separação pode pare- cer umconflito como que seria consi- derado uma conduta aceitável – ainda que o profissional esteja seguindo um código formal de ética. Durante o tra- balho de apuração da série sobre auxí- lio alimentação para o Washington Post , Eli Saslow volta e meia pagava uma refeição para personagens da reportagem. Mas o código de ética do jornal ditava que não interferisse além disso. “Meu trabalho não é o de defensor, não estou ali para alimentar as pessoas”, diz. “Mas às vezes é difí- cil. Passo o dia todo com uma famí- lia cuja geladeira está quase vazia e vejo sua luta para achar uma saída. E daí volto ao hotel e tomo uma cer- veja enquanto faço anotações sobre o dia. Há algo aí que não é muito satis- fatório, obviamente, e meio errado.” Durante o tempo em que cobriu o sério problema das drogas na cidade de Baltimore para o jornal The Balti- more Sun , David Simon – criador da série The Wire , da HBO – recusava- -se a dar dinheiro a fontes em troca de informação. Já enquanto redigia The Corner , um livro de não ficção sobre a vida de traficantes numa notória esquina da rua Fayette, também em Baltimore, Simon baixou a guarda quando um viciado começou a pas- sar mal na sua frente. O sujeito estava falando com Simon havia três horas – em vez de estar buscando dinheiro para comprar mais droga. “Ele vomita e fico sem saber o que fazer”, diz Simon. “Aí digo, ‘Sabe o que mais, você me deu três horas do seu tempo, tome aqui dez dólares’. Sabendo que agora ele vai se drogar, digo a ele: ‘Não é sempre que vou fazer isso, mas se você fosse o senador do 46 o Distrito e eu estivesse cobrindo a assembleia em Annapolis, e você tivesse passado três horas me expli- cando a situação do projeto de lei 76, eu teria pago o almoço e cobrado a despesa da empresa’.” Simon faz uma pausa. “Sei lá! Qual é a resposta? Não devia ter pago para que se drogasse?” Perigo iminente Quando começou a trabalhar na apu- ração de Enrique’s Journey , Sonia Nazario já tinha relaxado um pouco a rígida postura sobre a intervenção nos fatos. A reportagem, que ganhou umPulitzer e acabouvirandoumlivro, narra a jornada de um garoto hondu- renho de 17 anos que cruza a fronteira dos Estados Unidos para se juntar à mãe. O “incidente da escova de den- tes”, como Nazario o chama, a con- vencera de que, se alguém estivesse correndo “perigo iminente”, ela ten- taria protegê-lo. Enquanto se preparava para a empreitada, Nazario buscou refletir sobre o que consideraria “perigo imi- nente” para Enrique. Na prática, con- tudo, a repórter avaliou cada desafio à medida que surgia. Depois de dois meses, já na oitava tentativa de che- gar à fronteira, Enrique estava can- sado e fazendo uma única refeição por dia. Estava péssimo, raciocinou Nazario, mas não corria umrisco ime- diato. Quando chegaram à Cidade do México, Enrique precisava entrar em contato com a mãe. Durante duas semanas, Nazario observou o garoto lavando carros para tentar, a todo custo, juntar 10 dólares para comprar umcartão de telefone. “O tempo todo, meu celular estava na bolsa. Mas não podia emprestá-lo, pois achei que isso mudaria o curso da história”, diz ela. Ao longo do caminho, Nazario tam- bém se recusou a ajudar outras pes- soas. Todo dia, 30 ou 40 pessoas lhe pediam comida – e sua resposta, em geral, era não. Parte da justificativa era uma questão prática – não podia alimentar todomundo e temia que, se começasse a ajudar, seria assediada por umamultidão atrás de dinheiro e comida. Isso posto, nenhuma decisão dessas foi fácil. “Creio que (...) todas essas decisões caem numa área cin- zenta. A pessoa é miserável? Está em A cena da menina esquálida, clicada em 1993 por Kevin Carter, no Sudão, levou um Pulitzer, mas foi criticada quando Carter admitiu ter esperado 20 minutos antes de espantar o abutre Arquivo CJR/Kevin Carter / corbis
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