RJESPM 11
revista de jornalismo ESPM | cJR 77 gido apenas por uma bolinha de papel e forjado um ferimen- to “como o goleiro chileno Ro- jas”. Desde então, as duas ver- sões convivem mais ou menos conforme o alinhamento políti- co de quem as dissemina, mas uma pesquisa na internet reve- la que a versão de Lula se tor- nou dominante. Furtado vai fundo para des- trinchar o caso porque, segun- do ele, a imprensa não analisou o episódio. Munido de imagens produzidas por cinco câmeras de vídeo localizadas ao redor de José Serra, em ângulos diferen- tes (todas disponíveis na inter- net, afirma na narração), faz uma excelente reconstrução da cena de uma bolinha atingindo leve- mente a cabeça do candidato. Trata-se de uma reportagem convincente. O espectador é le- vado a crer que a versão divul- gada pelo presidente Lula, na solenidade oficial no dia seguin- te ao episódio, é verossímil. O conjunto da apuração, no en- tanto, serve para mostrar co- mo o filme comete um defei- to comum na imprensa. Quem olha a árvore não consegue ver o bosque, diz o famoso adágio alemão citado por Ortega y Gas- set em suas Meditações do Qui- xote (Livro Ibero-Americano, 1967). Jorge Furtado olhou tão detidamente a bolinha, por tan- tos ângulos, que não viu nem deixa seus espectadores verem que ao redor daquela cena, e principalmente nos minutos se- guintes, à medida que o candi- dato deixa a marquise para fa- zer a caminhada que os opo- nentes querem impedir, ocorre burguês”), que, mesmo ressal- vando não gostar “da burgue- sia”, entende ser a melhor re- presentação do noticiário, por- que feito por um conjunto par- rudo de profissionais. A ideia é corroborada por José Roberto Toledo, para quem o processo de produção coletivo estabe- lece múltiplos filtros e tende a garantir maior qualidade na cobertura (embora “nem sem- pre”, como adverte). Além da peça e dos depoi- mentos, o filme aponta casos que o diretor elege como er- ros ou coberturas defeituosas da imprensa brasileira, sobre os quais ele faz como que peque- nas reportagens. Furtado se re- vela um repórter convincente. Narração em detalhes Duas histórias são mais minu- ciosas. A primeira é o caso do objeto que atingiu a cabeça do candidato José Serra em um evento de campanha no Rio de Janeiro em 2010. Na época, vá- rios órgãos de imprensa noticia- ram que ele havia sido vítima de agressão durante um confronto commilitantes petistas que pro- curavam impedir a caminhada do candidato e apoiadores por uma área comercial de Campo Grande, no Rio. Serra procurou atendimen- to médico à noite; submetido a uma ressonância magnéti- ca, repousou e deixou a clínica sem nenhuma sequela. No dia seguinte, em entrevista duran- te evento oficial da Presidên- cia, o presidente Lula acusou o oposicionista de ter sido atin- uma batalha campal. Pedras e outros objetos voaram em torno da comitiva, uma repórter foi ferida, lojas fecharam as por- tas. Alguns minutos depois uma coisa mais pesada atingiu o can- didato, que entra em uma van e espera a tempestade de ob- jetos passar. As cenas também estão na internet. Mas nada dis- so aparece no filme. Furtado fo- cou a árvore e omitiu o bosque. Em outra reportagem, o filme narra umepisódio que, visto com a distância de dez anos, parece a um tempo hilariante (os jorna- listas entrevistados gargalham ao ouvirem a história) e grave por não ter sido corrigido à épo- ca. Trata-se de uma grande cha- mada de primeira página da Fo- lha de S.Paulo em 2004 que di- zia que um quadro de Pablo Pi- casso decorava um escritório da burocracia do INSS, em Brasília. Segundo narra o diretor, lo- go ao ver a reportagem ele se lembrou ser muito semelhan- te ao quadro Mulher de Bran- co , que está exposto no museu Guggenheim, emNova York. Fur- tado analisa fotos do original e da peça no INSS para concluir com certeza que se trata de uma reprodução. Alertou o ombuds- man do jornal. Nada aconteceu. O cineasta volta ao tema, vai ao museu de Nova York, à sede do INSS, prova sem som- bra de dúvida que emoldurado na repartição de Brasília está um simples pôster. Os jornalis- tas entrevistados se divertem com a “barriga”. Um prome- te que, depois do filme pron- to, vai investigar por quanto o INSS aceitou a reprodução ba- rata. Alguém diz que a reporta- gem tem um preconceito implí- cito (o governo de um operário não sabe cuidar de um Picasso). Lendo a reportagem da Folha de 7/3/2004 http://acervo.fo- lha.com.br/fsp/2004/03/07/2/, vê-se que não há nenhuma iro- nia, nem mesmo o governo Lu- la é apontado como responsável por qualquer coisa relacionada à obra. Tampouco há referên- cia a prejuízos ao erário por in- corporar um pôster como sendo obra original de Pablo Picasso. A reportagem é induzida a erro por um historiador da arte e a repórter, sem a mesma forma- ção em artes plásticas que Fur- tado, engole a história. O filme termina mantendo abertas vá- rias das dúvidas que o cineas- ta acusa a imprensa de ter dei- xado antes: quem confundiu o pôster com um original de Pi- casso, qual o valor atribuído ao papel impresso no tombo do go- verno? Depois de revelado o en- gano, o que seria feito com a re- produção? Nada, a história ter- mina sem fim. Erro grosseiro Há uma terceira narração de um erro grosseiro da imprensa, que até hoje passa como o maior da história: o caso da Escola de Ba- se, em que uma acusação fal- sa de abuso sexual de crianças provocou uma onda histérica, a destruição do prédio de uma escola e da reputação de seus proprietários. Não há uma re- portagem mais detida sobre o episódio, apenas a reprodução de artigos da própria imprensa.
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