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revista de jornalismo ESPM | cJR 29 desses manifestos chamou sua aten- ção: dinheiro vivo, helicópteros. Esses documentos virarama base da repor- tagem. Os manifestos não indicavam só uma carga curiosa, mas uma rota estranha – que dava voltas para evitar a Turquia (que é membro da Organi- zação doTratado doAtlânticoNorte – Otan), aumentando emmuito a dura- ção do voo. De posse dessa informa- ção, o ProPublica entrou em ação, investigando os fatos com uma garra indispensável (por melhores que fos- sem os documentos iniciais). Entre- vistaram autoridades e especialis- tas e recorreram até aos chamados “spotters” – entusiastas da aviação que registram imagens dos números da cauda de aeronaves durante pou- sos e decolagens – para verificar os voos correspondentes aos manifes- tos que tínhamos. Durante todo esse tempo, continuei recebendo arqui- vos daminha fonte, repassando-os ao ProPublica e deixando a fonte a par do progresso da apuração. Um dia, o Scott me disse que esta- vam prontos para dar a matéria. Pedi um crédito de “colaboração”, não de autoria. O ProPublica fizera o verda- deiro trabalho. Poucas horas antes de subir a repor- tagem, os editores do ProPublica enviaram os manifestos ao governo sírio para ouvir seu lado. Foi a única falha de segurança que cometeram. Meses antes, naquela reunião lá atrás, tinha dito que queria examinar todo documento antes que fosse divulgado para buscar possíveis marcas d’água ou achar um jeito de ocultar sua ori- gem. Tinham esquecido. No meio de tantos cuidados com a segurança, foi fácil deixar passar um detalhe. Acesso negado Falei comminha fonte sobre osmani- festos. Ele já imaginava que algo tivesse ocorrido. Seu acesso aos docu- mentos das embaixadas supostamente fora descoberto–duas horas depois de a Síria ter recebido os manifestos de voo, as backdoors do sistema tinham sido fechadas. As semanas que se seguiram foram tensas. Com as brechas eliminadas, os sírios sairiamao encalço daminha fonte? Será que ele cometera algum erro, deixara algum rastro? Se tivesse deixado, o governo sírio se daria ao trabalho de persegui-lo? Meus temores vieram reforçar o que eu já sabia: a segurança opera- cional e o jornalismo de dados são coisas difíceis. Mas são a realidade do jornalismo responsável dos dias modernos. Não só a responsabilidade que o jornalista cobra de quem está no poder, mas a responsabilidade que o jornalista tem perante aqueles que cobre, perante o leitor e, especial- mente, perante suas fontes. A série de reportagens foi bem recebida – e deflagrou um ciclo de cobertura sobre o grau do apoio russo ao regime de Assad. Segui falando todo dia com minha fonte, que não estava tão nervosa quanto eu. Ele nunca tinha acessado nada sem o Tor e tomara todo o cuidado quanto à hora – e ao lugar – de rodar os pro- gramas que puxavamos dados. Quase dois anos depois, sigo em contato com ele, e ele ainda não vê sinais de que o governo sírio esteja no seu encalço. Mas, como acabei desco- brindo, ele não fora o único a traba- lhar na invasão dos servidores. Pelo menos mais uma pessoa participara da ação, alguém com quem minha fonte só tinha falado duas vezes. Ela fizera parte do trabalho técnico para comprometer os servidores, mas havia desaparecido antes de eu me envolver no caso. Talvez nunca vá saber se essa pessoa (ou pessoas) está em segurança. Ou se ficou contente com o que conseguimos graças a seu esforço. Espero que sim. ■ quinn norton escreve sobre ciência, robótica, hackers, legislação de direitos autorais, modificação corporal e medicina. Já publicou nas revistas Wired , The Atlantic e Maximum PC , entre outras publicações. O jornalismo de dados é difícil até na melhor das circunstâncias – e esse nem de longe era o caso. O material era desestruturado, em árabe e repleto de anexos Texto originalmente publicado na edição de julho/agosto de 2014 da CJR.
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