RJESPM 12
4 JANEIRO | FEVEREIRO | MARÇO 2015 se há um lugar-comum na cultura jornalística, é a com- paração entre a pena e a espada. A toda hora, em todo lugar, em charges, artigos, livros e panfletos, eis que surge alguém para dizer que a caneta é uma arma ainda mais poderosa que o fuzil. Muita gente que trabalha nas reda- ções embarca na mesma metáfora e acaba, de forma irre- fletida, dando curso ao velho mantra bélico (sim, uma contradição em termos) segundo o qual o bom repórter é mais ou menos como um bom soldado, o redator-chefe é um bom general de brigada e a redação é uma tropa. Trabalhar em jornais seria mais ou menos como tomar parte em guerras intermináveis contra nefandos inimi- gos, cruéis e selvagens. Bem sabemos que lugares-comuns são nocivos à clareza, à elegância e à precisão do texto. Esse, especialmente, tem feito estragos de grande monta, e não apenas nos textos, mas em todas as esferas direta ou indiretamente rela- cionadas às atividades jornalísticas. A suposição enga- nosa de que redigir artigos ou rabiscar uma caricatura seja um ato marcial induz a conclusões desastrosas. A maior delas talvez seja essa de achar que uma agressão bélica (uma charge num semanário, por exemplo) deve ser respondida com a legítima defesa, também ela agres- siva. Se a pena é mesmo uma arma, seria então razoável confrontá-la com outra arma, de igual para igual. Daí a atirar contra um cartunista é apenas um passo (aparen- temente lógico). É o caso, então, de perguntar: de onde vem o equívoco? Nos primór- dios dos jornais impressos, nos sécu- los 17 e 18, a analogia talvez tivesse algum sentido. Escreviam nas pági- nas públicas os filósofos iluminis- tas, animados pelas veleidades de levar ao povo as luzes da razão, sem- pre lutando contra as trevas, toma- dos pela vocação heroica de vencer o absolutismo etc. Com graça ou com grossura, era com a pena na mão que os homens de letras travavam seu combate: pela República, pela abo- lição da escravatura e, mais tarde, já no limiar do século 20, pelo voto das mulheres e pelos tantos “ismos” da política. Até ali, então, a metáfora tinha alguma justificativa. Hoje, não dá mais. O papel primor- dial dos veículos noticiosos não émais a propaganda ideológica, como já foi, mas o serviço público de informar, aliado ao dever de produzir as condições dialógicas para que ideias divergentes possam “conversar” entre si, no âmbito do tão falado “debate público” mediado pela ética da urbanidade. Não obstante, a ideia de que trabalhar na imprensa é uma guerra sangrenta, embora às vezes santa, ainda persiste, incólume. Na manhã de 7 de janeiro de 2015, quando dois terro- ristas promoveram o inominável massacre na redação do jornal francês Charlie Hebdo , em Paris, assassinando dez jornalistas, entre eles cartunistas mundialmente célebres, as comparações entre canetinhas hidrográficas e mísseis nucleares voltaram à carga. Capas de revistas semanais foram às bancas com alusões gráficas às similitudes entre o grafite e a baioneta, entre a lapiseira e a metralhadora, entre o nanquim e as bombas de napalm. As metáforas militares empesteiama indústria da comu- nicação de ponta a ponta. São especialmente endêmi- cas na publicidade e no marketing, cujos praticantes se deliciam com expressões como “público-alvo”, “dispa- rar e-mail marketing” e leem Shun Tzu para entender o “mercado” como se ele fosse um campo de batalha. Não nos cabe aqui tecer recomendações a uns ou outros, mas vale registrar que, ao menos do repertório próprio da imprensa, essas metáforas deveriam ser varridas. Defini- tivamente, letras, vídeos, fotos, falas e desenhos não são munição. O ofício de que tratamos nesta revista não tem nada a ver com guerrear. Essa metáfora já deu editorial A comparação entre a pena e a espada pode ter feito sentido no passado, mas hoje o mantra bélico segundo o qual o repórter é como umsoldado não temrazão de ser. O papel da imprensa é informar e criar condições para que ideias divergentes possam “conversar” entre si
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