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76 JANEIRO | FEVEREIRO | MARÇO 2015 LIVRO O dedo em riste e o gestual político A última campanha eleitoral, em que o dedo em riste foi te- ma de troca de acusações entre candidatos à Presidência, tor- nou bem oportuna a leitura do mais recente livro do historia- dor Carlo Ginzburg, Medo, Re- verência, Terror (Companhia das Letras), lançado no Brasil pou- co antes da própria campanha. Ginzburg é mais conheci- do por O Queijo e os Vermes (1987), um estudo sobre o pro- cesso contra um pregador con- siderado herege pela Inquisição, no século 16, que o autor usa para analisar a sociedade e a cultura da época, ao estilo cha- mado de micro-história. Nesta nova obra, publicada originalmente em 2008, reú- ne quatro ensaios em que uti- liza um conceito do iconologis- ta alemão Aby Warburg (1866- 1929) para analisar representa- ções da política. Warburg criou a ideia de que muitas pinturas renascentistas contêm elementos visuais que são referências a imagens pa- gãs, anteriores ao cristianis- mo medieval. Essas figuras ou gestos, quase sempre em deta- lhes, como que disfarçados nas obras, transmitem emoções por atualizaremmitos arcaicos. Warburg chamou esses elemen- tos de Pathosformeln (ou “fór- mulas de emoção”, em alemão). A partir desse conceito, Ginz- burg cria uma matriz para ana- lisar quatro temas de natureza política: o pensamento de Tho- mas Hobbes; o quadro Marat em Seu Último Suspiro , de Jacques- -Louis David; o Guernica , de Pi- casso; e os pôsteres de convoca- ção para esforços de guerra em que um personagem simbólico qualquer aponta o dedo para o espectador. O primeiro pôster do gêne- ro foi usado na Inglaterra no iní- cio da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Um militar muito po- pular, Lord Kitchener, foi nomea- do ministro da Guerra e sua ima- gem foi espalhada por todo o país convocando os britânicos para se alistarem no Exército. A adesão foi muito alta e, antes que a guerra acabasse, o dedo seria apontado para italianos e alemães, pelo Tio Sam, ameri- cano, e pelo Exército Vermelho russo; depois, pelos nazistas em cada país invadido. Até o gover- no provisório dos paulistas usou o pôster para pedir ouro à po- pulação, na Revolução de 1932. Ginzburg busca a presença desse gesto na iconografia an- tiga. Ele vai encontrar o dedo le- vantado por Cristo em um íco- ne do início da Idade Média (no Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai) e em várias outras representações dele; na Criação do Sol e da Lua , de Michelânge- lo (1508, teto da Capela Sisti- na, Vaticano) e em um quadro de Caravaggio em que Cristo chama São Mateus (1598), en- tre outros. O ensaísta italiano refere-se a uma passagem do escritor ro- mano Plínio, o Velho, descreven- do uma pintura (que já não exis- te mais) em que a deusa Miner- va “via o espectador indepen- dentemente de onde ele estives- se olhando”. E compara com o pôster de Lord Kitchener, citan- do um artigo de jornal de 1916 (cujo autor desconhece o texto de Plínio): “De qualquer ângu- lo que se observasse, os olhos se encontravam com os do es- pectador e nunca o deixavam”. Ginzburg indica sua “conclu- são provisória”: “Podemos in- terpretar o dedo apontado de Kitchener como uma versão se- cularizada e escorçada do ges- to horizontal de Jesus na pin- tura de Caravaggio? Afinal, em ambos os casos temos um cha- mado – um chamado às armas, um chamado religioso”. No Brasil, o dedo em riste foi associado à agressividade ma- chista quando Aécio Neves de- bateu com Dilma Rousseff, que Paulo Whitaker / Latinstock Paulo Whitaker / Latinstock Dilma Rousseff e Aécio Neves durante debate entre candidatos à presidência na TV Bandeirantes (2014)

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