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28 julho | agosto | setembro 2015 honesto, conferindo ao jornalista uma formamais sólida de credibilidade do que a pompa da doutorice, mas também gera certa intimidade com o público: “ Nenhum de nós sabe de nada”. Ao substituir a primeira pessoa do singular pela primeirapessoadoplural, o jornalistaestabeleceumelocom o interlocutor. Além disso, a incerteza anuncia o suspense, a trama que se desenrola – que é o que torna o esporte tão fascinante para começo de conversa. ParaGaleano, a incerteza transparente em Futebol ao Sol e à Sombra assume a forma de um espaço embranco entre as dezenas de vinhetas. Galeanonãodiscorre a fundo sobre uma matéria: faz gestos de sugestão, aponta curiosidades, vasculha a própria memória. Temas provocantes ficam semdesfecho, ou explicação. Ainda assim, a coisa funciona. 4) Não tenha medo do passado longínquo Um dos grandes méritos da indústria do esporte é saber celebrar sua história de forma constante e vibrante – mas semnunca deixar de avançar rumo à próxima temporada, ao próximo ano, ao próximomercado. Aqui, uma chuteira é pendurada. Ali, a flâmula de um campeão é erguida. Velhos craques são ovacionados no estádio e convida- dos a dar o chute inicial. Jornalistas, por sua vez, colo- cam episódios contemporâneos do esporte em contexto histórico, recordando efemérides e mostrando como o atleta de hoje se compara com o do passado. Mas esse contexto histórico é limitado à era moderna, quando as ligas esportivas de hoje e suas antecessoras imediatas tomaram forma. Faz sentido, pois o jornalismo possui dados para fazer a notícia esportiva de hoje dialo- gar com o passado. E certos esportes, como o basquete, são relativamente jovens. Mas por que não ir além? O passado longínquo pode dar um contexto importante ao jogo de hoje. Em Futebol ao Sol e à Sombra , Galeano não limita sua digressão sobre o futebol à Fifa e às Copas do Mundo: No futebol, como emquase tudo, os primeiros foramos chine- ses.Há 5.000mil anos, osmalabaristas chineses faziamdançar a bola com os pés, e foi na China que tempos depois se orga- nizaramos primeiros jogos. Ameta ficava no centro e os joga- dores evitavam, semusar as mãos, que a bola tocasse no chão. De dinastia em dinastia continuou o costume, como se vê em alguns relevos de monumentos anteriores a Cristo, e também emalgumas gravuras posteriores, quemostramos chineses da dinastia Ming jogando com uma bola que parece da Adidas. Esse pano de fundo dámais vividez ao discurso deGale- ano sobre traços mais recentes do futebol. Além disso, coloca as ligas esportivas de hoje – com sua influência e recursos vastíssimos – em importante perspectiva. São negócios. Não são donas do esporte que jogam, afinal. Tampouco o inventaram. Embora, como Galeano afirme, possa ser impossível dizê-lo da leitura de boa parte do jor- nalismo esportivo moderno: No fimdo século, os jornalistas especializados falamcada vez menos no talento dos jogadores e cada vez mais em suas co- tações. Os dirigentes, os empresários, os procuradores e de- mais cortadores do bacalhau ocupam um espaço crescente nas crônicas futeboleiras. Até algum tempo atrás, os passes se referiam à viagem da bola de um jogador para outro; ago- ra os passes aludem, antes, à viagem do jogador de um clube para outro ou de um país para outro. Quanto estão renden- do os famosos em relação ao investimento? Os especialistas nos bombardeiam com o vocabulário da época: oferta, com- pra, opção de compra, venda, cessão por empréstimo, valo- rização, desvalorização. Futebol ao Sol e à Sombra é umcorretivo importante para esse vocabulário truncado. A abordagemexpansiva e nada convencional deGaleano ao texto esportivodá aoprofissio- nal moderno uma janela para uma abordagemmais ampla e graciosa de seu ofício. ■ anna clark cobre os estados americanos de Wisconsin, Ohio, Michigan e Pennsylvania para a CJR . Clark já escreveu para publicações como The New York Times , The American Prospect e Grantland . Seu Twitter é @annaleighclark . Mauricio Planel Texto publicado no site www.cjr.org em 14 de abril de 2015.
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