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62 julho | agosto | setembro 2015 o jornalismo após snowden? Duas grandes dúvidas seguem no ar. A pri- meira é se as próprias tecnologias que Edward Snowden expôs são compa- tíveis com um jornalismo indepen- dente, investigativo. A outra, crucial, tem a ver com o próprio ofício e seria, emsíntese, o seguinte: “Oque deve ser, ou fazer, o jornalismo?” Primeiro, a tecnologia. Qualquer jornalista, ainda que minimamente informado sobre omaterial de Snow- den publicado pelos jornais The Guar- dian e The Washington Post , deveria saber que o Estado – até emdemocra- cias liberais – hoje é capaz de inter- ceptar, armazenar e analisar pratica- mente toda forma de comunicação eletrônica. Gente semrosto emórgãos sigilosos (para não dizer a polícia) pode, se quiser, ler suasmensagens de texto e e-mails. Pode ver quem ou o que você busca na internet. Pode adi- vinhar o que você está pensando. Pode acessar seus contatos. Epode segui-lo. Uma peça de James Graham – Pri- vacy – encenada em 2014 no teatro londrino Donmar Warehouse usou informações que o público fornecera ao solicitar ingressos pela internet ou ao deixar o celular e o Wi-Fi ligados durante o espetáculo para dramati- zar parte desses poderes. Acerta altura doprimeiro ato, gente do público munida de um iPhone foi instruída a fazer o seguinte no apare- lho: irparaAjustes >Privacidade>Ser- viços de Localização > Serviços do Sis- tema> Locais Frequentes. Em segun- dos, ouviu-se um espasmo coletivo no local. Metade dos ocupantes da pla- teia e dos balcões acabara de descobrir até que ponto o celular vinha monito- rando e registrando cada movimento seu. A prova estava ali, diante de seus olhos:mapasmostrandolugaresemque haviamestadonas últimas semanas ou meses, incluindo horários exatos. Um registro detalhado da vida de cada um. Estamos falando de umpúblico fre- Depois das revelações sobre espionagem de governos e pessoas, quem lida com dados confidenciais precisa saber como proteger fontes para divulgar o que é de interesse público O mundo pós-Snowden por alan rusbridger quentador de teatro, relativamente sofisticado e com óbvio interesse no tema da peça, a privacidade. A maio- ria, imagino, tinha uma vaga suspeita de que o celular era capaz de revelar informações sobre suas chamadas e até seus deslocamentos físicos. Mas havia algo brutal e desnorteante no ato de confrontar – em público – a evidência incontestável e precisa de seus movimentos. Nas seis semanas em que ficou em cartaz, a peça foi vista por muitos jor- nalistas. Quantos,mepergunto,muda- ramocomportamentodepois devê-la? Umcrítico de teatro pode não ter feito nada, por achar que não tem nada a esconder.Mas oquedizer do jornalista cujo trabalho envolve falar comfontes, por telefone ou cara a cara? Será que a ficha caiu? Será que entendeu que nenhuma fonte pode ser considerada realmente sigilosa se sua identidade pode ser rapidamente revelada pelo rastro eletrônico que todos deixamos?

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