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66 julho | agosto | setembro 2015 apreendeu o material de Snowden (usando, para tanto, uma lei antiterro- rismo contra o companheiro deGlenn Greenwald, DavidMiranda, detido no Aeroporto de Heathrow). Essa atitude do Estado britânico – que, obviamente, só pode ter ganhado força com a visão de outros editores e jornalistas decidindo que o Estado deve, sim, ter a palavra final – tor- nou um diálogo maduro considera- velmente mais fácil em Nova York e em Washington do que em Londres. É, sem dúvida, algo a ponderar na esteira de Snowden, e supondo que Chelsea Manning e Snowden dificil- mente serão os últimos a denunciar malfeitos. Espiões, autoridades e servidores públicos sem dúvida também estarão pensando a questão –muito discutida durante o caso em si – de quem pode ostentar o título de jornalista. No Guardian , não perdemos muito tempo indagando se Glenn Greenwald era ou não um “jorna- lista” de verdade. Glenn é um indiví- duo de fortes paixões e algum rigor. Faz campanha, mas também informa. Tem opiniões fortes e quer influen- ciar o debate, mas também conhece a fundo aquilo que o interessa – ou até o obceca. E trabalhou muito bem com nosso correspondente Ewen Macaskill, que é mais tradicional em todos os sentidos. Outros comentaristas na imprensa e legisladores não estavamconvencidos dequeGlenndevia ser consideradoum jornalista “de verdade”.Muito panfle- tário, interessado demais em influen- ciar o debate, muito argumentativo. E por aí vai. É uma questão séria, e não só para jornalistas. Épossível que certos seto- res do Estado e do governo britâni- cos já tivessem perdido a paciência com o Guardian . Mas, ao fazer ques- tão de que o material de Snowden na sede do jornal em Londres fosse des- truído, as autoridades britânicasmos- traramnão ter pensado emcomo – ou se – iriam lidar com o próprio Glenn. Nem como iriam lidar com o fato de que o Guardian mantinha cópias dos documentos na sede do ProPublica e do New York Times . Na internet, há treva e luz Fomos obrigados a destruir os discos com os arquivos. Mas não paramos de publicar o material. Para alguns, o retrato de uma placa de computador do jornal destroçada pareceu sinistro. O prefeito de Leipzig, emvisita ameu escritório, achoua imagemassustadora, por razões que permanecem vivas na memória de milhões de alemães. Mas,assimcomonãoháuminteresse público único, não pode haver uma visão única do que ocorreu durante o caso Snowden. Com o tempo, pas- sei a achar a imagemdos computado- res destruídos tanto aterradora quanto fonte de otimismo – justamente por- que seguimos publicando o material. É a internet que eles temem. É ela quequeremsubjugar.Oespaçonoqual qualquer umdenós pode achar tanto a treva quanto a luz. Mas as razões que levamo Estado a querer domar, pene- trar econtrolar ouniversodigital sãoas mesmas razõesque tornamesseespaço uminstrumentode liberdade.Oqueera impublicável noReinoUnidopodia ser publicado emoutros lugares. Irritante para o Estado britânico, sem dúvida. Mas maravilhoso, diríamos todos, se a informação em questão estivesse ten- tandoescapardo jugodaChina, daTur- quia, da Rússia, da Síria. O que Snowden fez foi abrir nossos olhos para interesses públicos diver- sos, às vezes divergentes e conflitantes – incluindo interesses representados por empresas, defensoresde liberdades civis, órgãosde inteligência,advogados, jornalistas, políticos. Minha impressão é que ainda não demos pleno crédito à lista completa decoisasparaasquaisSnowden tentou chamar nossa atenção–o leque inteiro de interessespúblicos conflitantes liga- dosaojornalismo, à lei, à inteligência, ao terrorismo, às relações internacionais, aocomércio, àprivacidade, àpolítica, à fiscalização, a liberdades civis, à tecno- logia, àcriptografia, à segurança, àcon- fidencialidade e à liberdade. Políticos emgrandes potências – ao reduzir astutamente a discussão à pri- vacidade versus segurança ou à liber- dade de expressão versus terrorismo – conseguiram desviar a atenção das questões de fundo no cerne do caso Snowden. Mas seguem todas aí e são importantes – e suspeito que daqui a 20 anos ainda estaremos discutindo todas elas. ■ alan rusbridger foi diretor de redação do Guardian e do Observer em Londres. Texto publicado no site www.cjr.org em 5 de junho de 2015. Assim como não há um interesse público único, não pode haver uma visão única do caso Snowden

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