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revista de jornalismo ESPM | cJR 69 tor a tentação de investigar: se- rá que Eco sabe algo que nós não sabemos? Será que está su- gerindo que a imprensa mun- dial deixou passar a grande fu- ga de Mussolini? Desde a década de 1950, quando produziu seu primeiro ensaio, até hoje, Eco passou a ser reconhecido como um dos mais importantes intelectuais das ciências humanas no pla- neta, beneficiado por uma in- cansável capacidade de produ- zir teses, romances, cursos e ar- tigos de imprensa (que por sua vez transforma em coletâneas de ensaios curtos). Em sua obra de ficção, tem se caracterizado por produzir livros sobre livros, ou seja, com muitas referências. Este não é seu melhor romance, mas cer- tamente é o de leitura mais le- ve e coloquial, o que talvez fa- ça dele o mais popular. E o mais atual, por ser uma crônica da morte do jornal, tragédia con- temporânea a que todos assis- timos em tempo real. ■ Número Zero Umberto Eco Record, 2015 208 páginas de entretenimento, o que resul- ta no mesmo) e vamos ter uma sucessão feita de fatos e heróis despidos de história (uma “li- nha do tempo”, ao gosto dos infográficos tão frequentes na imprensa contemporânea). Um jornalismo de “Fatos e Fotos”, de “Caras” e “Bundas”, por as- sim dizer. Ao descrever o modus facien- di e as regras propostas para o Amanhã , jornal sendo gestado no enredo de Número Zero , o au- tor faz muitas outras críticas ao jornalismo vazio, que nas entre- vistas ele atribui à era digital. São frases como: “O leitor só vai entender o que está aconte- cendo se lhe disserem que há uma queda de braço entre duas forças, que o governo anuncia um pacote de sacrifícios, que vamos subir a ladeira...”. Ou: “– Mas os jornais seguem tendências ou as criam? – As duas coisas (...). As pes- soas no início não sabem que tendências têm, depois nós lhes dizemos e elas percebem que as tinham”. E ainda: “Percebam que ho- je, para contra-atacar uma acu- sação, não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador”. O livro explora também ou- tro recurso comum no jornalis- mo popular, as teorias conspira- tórias por trás dos grandes fa- tos da história. O Amanhã pre- para uma grande reportagem sobre a vida do ditador Musso- lini depois de escapar da Resis- tência Italiana ao final da Se- gunda Guerra. Eco é um grande escritor e por isso mesmo um grande jornalista. Torna tão ve- rossímil a trama sobre o líder fascista, que ao final dá ao lei- O melhor de Marcelo Rubens Paiva Esta coluna estava fecha- da quando recebi o novo livro de Marcelo Rubens Paiva, com memórias do autor, sobre o fi- lho ainda bebê, o pai assassi- nado há quatro décadas pe- la ditadura e a mãe, uma he- roína que hoje vive o esqueci- mento do Alzheimer. Por isso mesmo, a obra contém uma reflexão sobre o que é e co- mo funciona nossa memória. Começo a ler e não consigo parar. A narrativa é intensa, o ritmo acelerado, o texto escrito como coração na ponta dos de- dos. Choro sentindo gosto sal- gado na cara, e não é de mar (esta é uma paráfrase de uma cena do livro). Trata-se de Marcelo Paiva em seu maior momen- to. Falo de cátedra, porque li todos os livros que publicou. Suas cenas se confundem em minha memória, como se agora fossem minhas: será que vivi ou li? (O autor faz perguntas assim, refletin- do sobre como a informação se estrutura no cérebro.) O livro remonta memórias de Marcelo e dos outros, em qua- dros que indicam a valentia da mulher que, já mãe de cinco fi- lhos e diante do assassinato do marido, decide estudar direito para poder enfrentar os desafios que teria pela frente. E se tornou uma advogada brilhante, uma pioneira no direito indíge- na, que recebia em casa o jovem líder sindical Lula para discutir a Lei da Anistia ou uma possível candidatura pelo nascente PT. Há muitos trechos emocionantes, que conseguem captar a empatia do leitor de forma avassaladora. Numa primeira lei- tura apressada, elejo o trecho a partir da página 105, quando Paiva descreve a tortura e a morte do pai, repetindo: “Meu no- me é Rubens Paiva” à medida que se esvaía, enquanto seus as- sassinos tocavam Jesus Cristo (“Eu estou aqui”). Em outra ce- la, também ameaçada de tortura, a irmã Eliana, adolescen- te, lembra de ouvir o som de Roberto Carlos. Até que “o velho pai” se entrega pensando consigo: “Tenho que morrer agora”. A cena remete à Paixão. O livro é uma espécie de testa- mento laico, principalmente sobre a mãe, que, embora não lembre, “ainda está aqui”. ■ memórias Ainda Estou Aqui Marcelo Rubens Paiva Alfaguara, 2015 296 páginas REPRODUÇAO REPRODUÇAO
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