RJESPM 15
58 OUTUBRO | NOVEMBRO | DEZEMBRO 2015 ficou claro para mim que há certa tensão – boa e necessária – entre a visão do ângulo do jornalista e a do ângulo do sociólogo. A preocupação do Ricardo Gandour é com o jorna- lismo como profissão, que tem sua ética e sua metodologia de trabalho. A minha preocupação é com o veí- culo, o jornal. Historicamente, tive- mos primeiro o jornal impresso e depois o rádio e a TV. O jornalismo continuou existindo com o lança- mento do rádio e da TV, mas foi afe- tado pela nova tecnologia. E agora surge algomuitomais revolucionário, os meios digitais, que atingem todos os laços da sociabilidade e da comu- nicação. E nós ainda estamos no iní- cio do processo. A pergunta é: nesse mundo digital, o que fica do jorna- lismo tal como o conhecemos? O mundo digital converge com tendências que antecedem a revolu- ção digital. Refiro-me a vocações da democracia e da vida política, uma história centrada em certos valores, que começam a se esfacelar por uma série de razões: o fim do comunismo, certamente, o avanço do individua lismo, a própria transformação pro funda do capitalismo, hoje centrado na ideologia do mercado e no con- sumo. Há uma maior individualiza- ção, uma revolução cultural que fica mais clara desde 1968, quando caem por terra as ideias de autoridade e hierarquia – seja na escola (profes- sor/aluno), seja em casa (pai/filho). Esses elementos, quando se somam à revolução digital, tornam-se mais profundos. Hoje a criança se comu- nica horizontalmente, retirando dos pais o controle sobre a comunicação. Os médicos são confrontados pelos pacientes com informações do Goo- gle. O que significa jornalismo nesse novo contexto? Para mim, a resposta passa pela questão do veículo: quais veículos estão disponíveis e o que se pode fazer para recuperar uma credibilidade jornalística questio- nada por essa dinâmica de múltiplas fontes e múltiplas possibilidades de informação? Fim da leitura Háoutroelementoaafetaro jornalismo (e também o ensino): o fim da leitura tal como a conhecemos. Otexto lido foi encurtado dramaticamente. Ora, um jornalismo que se resume a um tuíte é algo complicado. Há alguns anos, acreditou-se que o principal desafio do jornalista do mundo digital seria trabalhar com hiperlinks , o que hoje já é algo secundário pois foi banali- zado pela sua profusão. Não se trata de negar a revolução digital, porque somos parte dela. Mas de reconhecer que estamos vivendo uma revolução social e cultural profunda, que afeta todas as áreas – com elementos espe- cíficos do jornalismo. Há duas tendências que convivem hoje. Uma é a solipsista: cada um no seumundo e procurando se organizar com base em informações que nunca “fecham” – ou porque são contraditó- rias ou porque são acessadas somente aquelas que confirmam ideias pre- concebidas. A outra é a tendência da produção de mensagens simplifica- das, quase palavras de ordem. É o que chamo de teoria da primeira página: em países pobres, em que nem todo mundo lê jornal em casa, as pessoas leem a primeira página nas bancas. A manchete é fundamental para pautar uma agenda pública, mas o jornalismo deve ir além dela. O que está aconte- cendo hoje? A falta de uma reflexão mais profunda sobre a crise de valo- res e os desafios que enfrenta a socie- dade é parte de um contexto em que os intelectuais perderam seu lugar. O novo ambiente favorece a disse- minação de visões conspiracionis- tas da história. O solipsismo e a falta de umdebate público de ideias levam a uma sim- plificação e a um empobrecimento enorme da discussão. Por isso enfa- tizo a importância do veículo: é pre- ciso ter certa capacidade de transmi- tir uma mensagem mais sofisticada, mais complexa, mais difícil – e que não “fecha” com uma visão empo- brecida do mundo. No centro do que estamos discutindo está a questão da cultura política e de construção de sentido coletivo na nossa sociedade. O jornalismo é um dos pés de cons- trução dessa cultura. A visão ilumi- nista está dando lugar a um fecha- mento cognitivo e emocional, ele- mentos que futuramente podemcriar espaço para o totalitarismo. Minha preocupação, no limite, é menos com a profissão do jornalista e mais com por bernardo sorj O debate no espaço público perdeu qualidade
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