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32 abril | maio | junho 2016 contei para os alunos da ECA, no iní- cio de 2016, até hoje só tinha confi- denciado a amigos próximos e fami- liares. Sobre isso eu nunca falei. Trata- -se das razões que me levaram a cha- furdar no lixo da casa Dinda. Por que eu fiz isso? O que leva uma pessoa a lidar com algo tão nojento e sujo para escrever uma reportagem? Que valo- res estão em jogo nesse caso? O que é certo fazer? O que é errado? O dilema ético está sempre presente no dia a dia da nossa profissão. E, no meu caso com essa história de 1992, mesmo passados anos, a dúvida ética ainda convive comigo. O caminho que poderia ser visto por mim como o mais apropriado, para outros poderia ser considerado somente omais fácil. Falando comaqueles jovens estudan- tes, vi que a minha dúvida seria inte- ressante também para eles. Os dile- mas que vivi durante aquela apura- ção poderiam ser úteis na formação deles. Para explicar para a classe de olhos atentos a gênese da matéria, eu precisei contar o que estava acon- tecendo no Brasil nos idos de feve- reiro de 1992. Tive que voltar no tempo, puxar pela memória e buscar fatos que já não lembrava tão bem. Claro, usei um pouco da tecnologia do Google para me ajudar na precisão de datas e acontecimentos. Em 1992, os boatos eram avassala- dores e geravam sobe e desce intenso nas bolsas de valores emoperação em São Paulo e no Rio de Janeiro (atual- mente, omercado financeiro funciona apenas na capital paulista). Foramvíti- mas da central de boatos a atriz Clau- dia Raia e a cantora Fafá de Belém, ambas apontadas como portadoras do vírus HIV. Redes de fofocas ParaClaudiaRaiaoboato foi tãodevas- tador que, procurando enterrá-lo de vez, ela fez umteste emostrou o resul- tado numa entrevista coletiva. Ela não tinha Aids, uma doença tida naqueles anos como uma sentença de morte irreversível. O presidente Collor também caiu na rede das fofocas. Teria a mesma doença que Claudia Raia e Fafá de Belém. Segundo os boatos, o presi- dente teria tido umcaso amoroso com Claudia Raia e, por isso, teria se con- taminado também. O suposto diag- nóstico justificaria o emagrecimento repentino do chefe de Estado, que perdera 12 quilos em poucos meses e estava com o rosto cadavérico. O que intensificou o falatório foi o fato de ele faltar umdia ao trabalho no Palácio do Planalto. Collor costumava esbanjar saúde e expor sua disposição física em corridas pelo solo plano do cerrado. Era praticamente um Iron Man. Daí a inquietação dos fuxiqueiros. Esta- ria ele doente? Nas reuniões de pauta, a “doença misteriosa de Collor” sempre sur- gia. E novos boatos eram comparti- lhados entre os repórteres da sucur- sal de Brasília da Folha e, provavel- mente, em todas as outras redações dos grandes jornais brasileiros. O diz que diz que sobre a “doença fatal” do presidente era tão forte que, dois meses antes de eu me embre- nhar no lixo oficial, a repórter Sônia Carneiro, da Rádio Jornal do Brasil, perguntou durante uma entrevista coletiva com Collor, e sem floreios, se ele estava com Aids. Na ocasião, Collor disse que ficava feliz com as demonstrações de preocupação com sua saúde e respondeu que estava mais magro por causa das “inúme- ras atividades”. A redação da Folha emBrasília vivia dias de nervosismo e excitação. Eu me lembro bem do cenário: cadei- ras quebradas, mesas cinza de ferro e um aquário com ar condicionado mais forte onde ficavam não mais que dez computadores que atendiam à demanda da redação. A gente fazia fila para poder escrever as matérias e mandá-las para a sede em São Paulo. Naquele fevereiro de 1992 eu con- tabilizava quatro meses na Folha . Já tinha trabalhado no Jornal de Bra- sília e depois no Estado de S. Paulo . Após a eleição que catapultou Collor ao Planalto, embarquei para uma temporada na Inglaterra, onde tra- balhei como faxineira e garçonete. Depois de umano fora do país lavando latrinas e atendendo clientes num restaurante que vivia cheio, voltei com muita disposição. Era o momento de recomeçar. Naquele reinício de carreira, eu não tinhauma área fixade cobertura. Auxi- liava as diferentes editorias de acordo coma necessidade de cada uma. Foi aí que, numa reunião de pauta no inicio- zinho do mês, a saúde de Collor vol- tou a ser assunto. Estava mais do que na hora de deixarmos de ouvir male- dicências e tentar checar a veracidade O que leva uma pessoa a lidar com algo tão nojento e sujo para escrever uma reportagem? Que valores estão em jogo nesse caso?

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