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34 abril | maio | junho 2016 dias de “coleta” para que eu juntasse o material que embasou as matérias publicadas na Folha . No terceiro dia, uma sexta-feira, a sorte acabou. O titular da linha “Man- sões LagoNorte-Dinda” voltou ao tra- balho. Ele estava doente e afastado por alguns dias. Só então soube que estava até aquele momento lidando com o reserva. Só havia conseguido pegar os sacos de lixo porque o res- ponsável pela linha era um substituto eventual, que foi com a minha cara e acreditou na minha história. Ou fez de conta que acreditou. Após os riscos da coleta, veio a parte mais desagradável do trabalho: a sele- ção do lixo. Dizem que o jornalista separa o joio do trigo para publicar o joio. Eu tinha que separar o lixo que era notícia do lixo que era lixomesmo. Virei por uns dias motivo de chacota na redação. Arranjaramparamimuma saleta que ficava numcanto, onde pus emprática a fase de pré-seleção. Nin- guémqueria nemse aproximar. Omau cheiro espantava todo mundo. Suportei o mau cheiro, mas não foi fácil. Só de lembrarme pergunto como consegui fazer isso, mas fiz. Isolei a parte noticiosa do lixo presidencial e segui com ela, então, para a casa da minha mãe (eu ainda morava com ela).Minha apuração entrava emoutra fase. Numa operaçãominuciosa, mon- tei verdadeiros quebra-cabeças. A 14ª versão do artigo do presidente que seria publicado na Folha estava ras- gada em pedaços. Colei um a um até preencher as lacunas do texto. O queme pergunto, hoje, é se aquele trabalho aoqualme dediquei fazia sen- tido. Contei esses detalhes todos para os alunos da ECA, comessa dúvida na cabeça. Tenho para mim que muitos acharamo que eu fiz errado, mas nin- guém disse isso com todas as letras. Abri para perguntas. Poucas foram feitas. Uma delas, confesso, me dei- xou constrangida. O aluno falou que hoje é ilegal expor uma pessoa soro- positiva. Ele perguntou como eu lidava com isso. O que dizer? Dilema ético É bemverdade que, em 1992, era dife- rente. Mas, e se fosse hoje, seria ético fazer uma matéria usando as técnicas que usei? Seria ético revirar o lixo de Dilma Rousseff? São perguntas que nós, jornalistas profissionais, devemos nos fazer uma, duas, dez vezes. Revi- rei o lixo de uma pessoa, menti para o motorista do caminhão e, caso achasse um frasco de AZT, que eu nem sabia como se apresentava, estava disposta a publicar a informação de que o pre- sidente da República ou alguém na casa onde ele morava estava usando o remédio prescrito para portadores do vírus da Aids. Agi de forma ética? O interesse público justificava aquele nosso pro- cedimento? Até que ponto saber se o presidente da República tem uma doença grave, e saber isso contra a vontade dele, é de interesse público? A partir domomento que divulgássemos uma matéria confirmando a doença, não estaríamos correndo o risco de fazer o estado de saúde do ser humano Fernando Collor deMello se agravar? Claro que, se algum frasco de AZT fosse encontrado, muita água iria pas- sar por debaixo daquela ponte antes de publicarmos uma matéria com uma informação tão grave. Éramos muito jovens, muitos de nós, mas não acredito que fôssemos alegremente irresponsáveis. Olhando agora tudo isso em retros- pectiva, prefiro pensar que, por sorte (outra vez, a sorte), não achei AZT no lixo do Collor. Não achei nenhum indício de que ele estivesse comAids. Mesmo sem isso, a reportagem ren- deu. Saí daquela apuração com uma boamatéria, que revelou uma falha na segurança da principal autoridade do país, e, por causa dessa reportagem, as vulnerabilidades no esquema coorde- nadopeloCoronelDark foramsanadas. Que lições guardo desse episódio? Difícil dizer. Uma boa repórter não pode ter medo de sujeira, isso é certo. Uma boa repórter precisa gostar de notícia. Me pergunto, também, se a mentira dita ao motorista do cami- nhão de lixo era necessária. Se eu dis- sesse que era uma repórter ele teria me ajudado? Não tenho uma resposta para essa questão. Uma boa repórter deve respeitar as pessoas, mesmo as mais poderosas. Deve encarar com boa-fé os seus dilemas éticos e não mentir para si mesma. Por fim, uma repórter só é boa de verdade quando tem uma dose de sorte. Eu tenho. ■ edna dantas tem passagens por diversos jornais e revistas, entre eles Folha de S.Paulo e Estado de S. Paulo , Veja , Época e Isto É, e pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. É sócia-diretora da agência Satya Comunicação e Tecnologia. Que lições guardo desse episódio? Difícil dizer. Uma boa repórter não pode ter medo de sujeira, isso é certo, e deve respeitar as pessoas
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