RJESPM 16

16 JANEIRO | FEVEREIRO | MARÇO 2016 IDEIAS + CRÍTICAS PASQUALE CIPRO NETO Desacordo regula ortografia Sucessão de buracos negros e aberrações no texto oficial fazem do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro, uma peça surreal e inensinável quandorecebi oconvite para escre- ver este texto, pensei e repensei: como me referiria a essa infâmia cujo nome oficial é “Acordo Ortográfico”? Como chamar de “acordo” algo que desde a fase embrionária gerou muito mais desacordo do que concórdia? Que nome dar a algo que pretendia unificar a grafia nos então sete (oito, depois da independência de Timor) países lusó- fonos e que até hoje não passa de um desencontro de normas, procedimen- tos, datas, prazos etc.? Ao longo desses anos todos, tenho usado a expressão “(Des)AcordoOrto- gráfico”, mas neste texto usarei sim- plesmente “desacordo”, sem parên- teses no prefixo e sem inicial maiús- cula, já que a alma da coisa é mesmo muito pequena. Não discuto a necessidade da cria- ção de um acordo. Eu não o acho necessário, sobretudo quando ouço e leio que a sua criação facilitaria o trânsito internacional da língua portuguesa, o que vejo como pura balela, mas respeito quem pensa contrariamente. Décadas de imbróglio Posto isso, sugiro começar por um pequenohistórico.Asquestões relativas ao desacordo se arrastam(nomínimo) desde dezembro de 1990, quando o documento foi assinado, em Lisboa. Segundo o artigo 3º do texto oficial, “O Acordo Ortográfico da Língua Portu- guesa entrará emvigor em1º de janeiro de 1994, após depositados os documen- tos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Por- tuguesa”. O artigo 2º dizia que seriam tomadas “as providências necessárias comvista à elaboração, até 1º de janeiro de 1993, de umvocabulário ortográfico comumda línguaportuguesa, tão com- pleto quanto desejável e tão normali- zador quanto possível...”. Como se sabe, as datas citadas che- garam e nada de nada de vocabulá- rio ortográfico comum, nada de nada do tal depósito dos tais documen- tos de ratificação e, consequente- mente, nada de nada da entrada em vigor do desacordo. Em 2009, em atitude deselegante (para não dizer outra coisa), a Academia Brasileira de Letras (ABL) teve a desfaçatez de apresentar o seu Vocabulário Orto- gráfico , em clara demonstração de ignorância do texto oficial do desa- cordo. Pior: insolentíssimo, um dos membros da ABL declarou que em nenhum momento o texto do desa- cordo fala em vocabulário comum. É verdade: o artigo 2º do texto oficial do desacordo é mero delírio. Em Brasília, numa das audiências públicas da Comissão de Educação do Senado, essemesmomembrodeclarou que a ABL não tinha nenhuma obriga- ção de consultar quemquer que fosse para deliberar a respeito dos pontos obscuros do desacordo... Então tá.

RkJQdWJsaXNoZXIy NDQ1MTcx