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REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 5 o ano de 2016 foi pródigo em fatos atordoantes – ou, se quisermos ser precisos, foi pródigo em acontecimentos objetivos que puseram por terra as veleidades da objeti- vidade jornalística. Para começar, tivemos alguns resultados eleitorais abso- lutamente inesperados que deixaramos analistas falando sozinhos. Os plebiscitos que decidirampela saída do Reino Unido da União Europeia e pela rejeição do acordo de paz do governo colombiano com as Farcs e a eleição de Donald Trump colocaramemdúvida os institutos de pes- quisa de opinião e o jornalismo interpretativo. De que- bra, jogaram gasolina no debate sobre o papel das mídias sociais no estabelecimento do que é verdade ou mentira na formação da opinião pública. Em termos de repercussãomundial e de possíveis efei- tos para o futuro da mídia como um todo, nada superou a eleição presidencial americana, tema da coluna Tudo Em Dia desta edição. Não foi só na campanha de Trump que a prática do jornalismo sofreu abalos sísmicos, gerando consequências que serão sentidas na profissão nos próxi- mos anos não só nos Estados Unidos, mas em quase todo o mundo ocidental. A candidata derrotada, Hillary Clin- ton, não ficou atrás. Um deles merece destaque: o trabalho subterrâneo de comentaristas de imprensa em prol de estratégias partidárias. Um caso proeminente foi o de Donna Bra- zile, presidente interina do diretório nacional do Partido Democrata (de Clinton), que era também colaboradora fixa da rede de TV CNN. Informações tornadas públicas pelo Wikileaks mostraram que ela antecipou a Hillary perguntas que seriam feitas aos dois candidatos no debate entre eles, coordenado pela emissora e moderado por seu colega de casa Anderson Cooper. Detalhe: logo no início do programa, Cooper garantiu aos espectadores que nin- guém tinha tido conhecimento pré- vio das questões. Ficou chato. A princípio, Donna Brazile tentou negar a veracidade da revelação. Mas, na véspera do pleito, não só confirmou o que havia feito, como assegurou que sua consciên- cia “como ativista, como estrategista [ política ]” estava “muito limpa”. Desse modo, a comentarista (e cabo eleito- ral) deixou claro a quemela devia leal- dade (ao seu partido, não à emissora) e qual a atividade que tem a sua prio- ridade (a política, não o jornalismo). Não ficou só nisso. Após o escândalo, colegas relataram outras situações no passado em que Brazile havia indu- zido a CNN a erro ou levado informações a líderes demo- cratas com o objetivo de beneficiá-los. A utilização de políticos ou egressos da política em fun- ções jornalísticas não é novidade nos Estados Unidos. Pat Buchanan, que chegou a ser aspirante à Presidência pelo Partido Republicano em 1992, era comentarista da CNN antes de sua aventura eleitoral. Depois dela, voltou ao seu ofício original. George Stephanopoulos, porta-voz da Casa Branca no primeiromandato de Bill Clinton, virou comen- tarista e depois âncora da rede ABC, e não negou este ano ter feito uma doação de US$ 75 mil à Fundação Clinton. Oproblema não se resume à política. No Brasil, ex-joga- dores e técnicos de futebol, muitos com contratos vulto- sos de publicidade de produtos esportivos, são comen- taristas de emissoras de rádio e TV ou jornais. De um lado do balcão, são garotos-propaganda. Do outro, fazem papel de analistas independentes e desinteressados a ser- viço de um único senhor: o público. Essa promiscuidade, esse conflito gritante de interes- ses, que derruba os tradicionais muros que visavam pre- servar a isenção do jornalismo, em parte se deve à crença amplamente difundida de que celebridades são essenciais para atrair a audiência. Essa crença, elevada ao altar dos dogmas irrefutáveis, fere de morte a credibilidade, que é o único ativo da profissão. Você, por exemplo, anda con- fortável com a imprensa que tem? Por que não? ■ Da arte de servir a dois senhores (ou mesmo mais) EDITORIAL Nos Estados Unidos, comentaristas políticos ajudam seus partidos por baixo do pano. NoBrasil, garotos-propaganda de produtos esportivos posam de comentaristas isentos e desinteressados. Uns e outros podem ganhar muito bem de seus dois (ou mais) clientes, mas a imprensa sai perdendo, e o público perde mais

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