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REVISTA DE JORNALISMO ESPM | CJR 19 18 JANEIRO | JUNHO 2017 mação e o entretenimento podem ser definidos como bens de tipo experi- mental 5 . Em tese, o consumidor ten- deria a uma atitude passiva ou con- servadora, evitando experimentar um bem que não conhece, mas que pode conhecer apenas após realizar a expe- riência. Vai aí o clássico problema das “preferências adquiridas”. Oresultado seria a provisão ineficiente de certos bens (ao menos em tese) mais sofis- ticados ou inovadores. Há ainda a ideia de que o mercado é ineficiente na provisão dos chama- dos bens meritórios. Isto é, bens cujo valor “intrínseco” supera o valor que as pessoas estão dispostas a pagar no mercado. Énotório que tudo isso pode ser bastante subjetivo. O que define um bem meritório? Nos dias de hoje, como saber se, de fato, existe carência de espaços de comunicação para que as pessoas questionem a autoridade pública?Nesse âmbito, Bucci considera que há uma falha, e que uma emissora pública poderia cumprir algumpapel nessa direção. Em outros momen- tos da vida brasileira, a comunicação pública foi justificada segundo parâ- metros distintos. Quandoda criaçãoda TV pública, no final dos anos 1960, a lei estabeleceu que “a televisão educa- tiva se destinará à divulgação de pro- gramas educativos,mediante transmis- são de cursos, palestras, conferências e debates” 6 . Na época, no Brasil, o tipo de “escassez” identificado era distinto do diagnóstico feito por Bucci. Ambos, porém, seguem a ideia de que há uma falha no mercado de comunicação. Por fim, há falhas associadas ao tema do monopólio natural. O mer- cado de comunicação tenderia a apre- sentar traços monopolísticos devido à restrição de canais de transmissão ( spectrum scarcity ) associada ao alto custo de entrada (equipamentos, pro- fissionais e infraestrutura). Nesse contexto, a concentração da oferta de informação e imagem é a tendên- cia esperada do mercado. O argumento que buscamos apre- sentar neste artigo vai em uma dire- ção contrária. Ele parte da observa- ção de que vivemos hoje em um con- texto bastante distinto daquele que marcou o nascimento da comuni- cação pública, no Brasil, e que deu sentido, de um modo geral, à tradi- cional ideia da comunicação pública como resposta às falhas de mercado. O contexto contemporâneo, mar- cado pela abundância da informa- ção (Press, Williams e Bruce, 2010), obriga-nos a repensar o argumento tradicional. Utilizando a expressão do historiador Tony Judt, “Quando os fatos mudam, eumudo de opinião. E o senhor, o que faz 7 ?” Outro ponto de vista Nesse contexto, apresenta-se o que iremos chamar de argumento ou via pluralista. Ele dirá que a liberdade de expressão e o direito à informação sãomais eficientemente assegurados não como provisão de uma emissora ou agência pública, mas com base na obtenção de certo estado de coisas na sociedade, no qual os cidadãos, indivi- dual ou coletivamente, emcada comu- nidade, disponhamdemúltiplos veícu- los e recursos comunicacionais capa- zes de expressar seus pontos de vista e visões de mundo. A inspiração original deste argu- mento pode ser encontrada nos escri- tos de Tocqueville, em seu clássico Democracia naAmérica , quando disse: Na América, não há sequer uma aldeia quenãopossua o seu jornal. Pode-se facil- mente imaginar quenãoépossível estabe- lecer uma disciplina ou unidade de ação entre tantos competidores. Cada umtrata de competir de seu próprio jeito. Todos encontram-se, efetivamente, perfilados a favor ou contra o governo; mas sua crí- tica e sua defesa são feitas em milhares de formas distintas. Eles não podem for- mar aquelas grandes correntes de opinião que põem abaixo os diques mais fortes. (Tocqueville, 2000) Tocqueville enfatiza a existência de umamplo e descentralizadomercado deveículosde informação. Emquepese a imprensa seja forte e onipresente, oferecendo espaçopara a expressãodo universo caótico de opiniões, de todos os matizes políticos, nenhum veículo, ou grupo de veículos, tem, individual- mente, a força para condicionar a opi- niãopública ouafetar demodounilate- ral o governo, qualquer que seja a sua orientação política. Há, portanto, um sentido de potência (dada sua maciça presença) e fragilidade (dada sua dis- persão) na atuação da imprensa. 5 Referência ao conceito de experience good , originalmente definido por Phillip Nelson, em oposição aos search goods . Bens do primeiro tipo são aqueles cujas qualidades não podem ser determinadas antes do ato de compra (Nelson, 1970). 6 Artigo 13º do Decreto-Lei 236/67. 7 Referência ao livro póstumo de Tony Judt, Quando os Fatos Mudam (Objetiva), lançado no Brasil em 2016. 2 Para conferência em http://www.comresglobal.com/wp-content/uploads/2015/08/Whitehouse-Consultancy_BBC-Funding-Survey_August-2015.pdf 3 Na Inglaterra, deixar de pagar a licence fee é um ato criminoso passível de processo legal ( court appearance ) e uma multa de até 1.000 libras, mais os custos legais. 4 Por esta razão, parece apropriado utilizar a expressão “público-estatal” para definir o perfil de emissora representado pela BBC e, de um modo mais amplo, na definição sugerida por Bucci para a comunicação pública. Usaremos esta expressão ao longo deste texto em alguns momentos. sultoria em comunicação e políticas públicas da Inglaterra, mostrou que 52% dos cidadãos ingleses gostaria que a BBC passasse a ser sustentada por anúncios publicitários, em vez do tradicional modelo da licence fee 2 . É claro que uma só pesquisa não é conclusiva e, presumivelmente, há um reconhecimento relativo à qualidade da programação oferecida pela BBC. Interessante é perceber que omaior contingente de suporte à permanên- cia da licence fee encontra-se entre os cidadãos commaior renda, segmento que temmais acesso a fontes de infor- mação e canais por assinatura. É pos- sível imaginar que parte significa- tiva desse público tenderia a adqui- rir uma assinatura da BBC caso o sis- tema operasse segundo uma lógica de mercado. Da mesma forma, é perfei- tamente racional imaginar que uma quantidade expressiva de consumi- dores prefira que o custo de manu- tenção da BBC, sem o aborrecimento produzido pelos anúncios publicitá- rios, seja compartilhado entre todos os cidadãos ingleses. Na conceituação sugerida por Bucci, e o exemplo da BBC demonstra isso com clareza, uma estação pública de televisão é estatal emum sentido bas- tante preciso: ela existe se (e somente se) o Estado cumprir a função que lhe é precípua, qual seja, de obrigar o cidadão a pagar pela oferta de um serviço, mesmo contra a sua vontade (argumento do bempúblico). Isso diz respeito, por óbvio, à clássica defini- ção deWeber do Estado comomono- pólio legítimo do uso da violência. Os cidadãos ingleses eventualmente sem interesse nos serviços da BBC e que decidirem não pagar a licence fee terão a perfeita medida da sentença weberiana 3 4 . Canal para o cidadão É evidente que o argumento a favor da existência de estações públicas de televisão não pode ser dado pela quali- dade da programação que ela oferece. Aquestão central é se, nomundo atual, marcado pela abundância informacio- nal e pelo vertiginoso avanço das tec- nologias de comunicação, ainda faz sentido atribuir ao Estado a função de financiar a produção de informação. A resposta de Bucci é positiva. Ele sustenta que uma emissora pública se define como um “posto avançado daquilo que o cidadão tem direito a perguntar à autoridade” (ibidem). Sua função se define com base na lógica da representação dos cidadãos ou da “sociedade”. O professor é explícito ao dizer que, por não ter finalidade No mundo atual faz sentido atribuir ao Estado a função de financiar a produção de informação? de lucro e tampouco umproprietário particular a quemprestar contas, pode subordinar-sediretamente à sociedade (ibidem). Ou, ainda, que as emisso- ras públicas existempara “contribuir de modo central na mediação do diá- logo entre os cidadãos” (idem, p. 126). A argumentação de Bucci segue, em linhas gerais, o clássico argumento da comunicação pública como resposta a problemas de falha de mercado. Omercado simplesmentenãodá conta de produzir informação em quanti- dade suficiente, ou ainda informa- ção e “espaços críticos” com a qua- lidade desejável para uma democra- cia. Por setor privado, entenda-se aqui não apenas as emissoras parti- culares de rádio e televisão, mas tam- bém a ampla gama de canais comu- nitários, produtores independentes, canais digitais, sites, blogs, além do universo aberto de indivíduos emis- sores e receptores de informação, em especial nas redes sociais. Trata-se de um argumento bastante conhecido.Acomunicaçãopública fun- cionaria comoumtipode bempúblico. Seu consumo atende aos critérios de “não exclusão” e “não competitivi- dade”. É impossível excluir as pessoas do seu consumo e incluir mais pes- soas não acrescenta nada a seu custo de produção. Em tese, isso desestimu- laria sua oferta comercial. Afora isso, haveriaproblemas de geraçãode exter- nalidades (positivas ou negativas), de assimetria de informação. Esta última modalidadeocorreumavezquea infor-

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